À porta

Quando ele enfim nunca mais voltou eu pude, por um tempo, descansar. Pude olhar ao redor, pude olhar a mim mesma, pude ter medo, e então raiva, e enfim nojo – primeiro de mim mesma, mas depois, brevemente, dele.

Contemplei, curiosa, a presença tão nítida dele em meus pensamentos. O nojo dele era uma presença dele em mim, que nunca me veria livre dele por ser justamente uma presença dele em mim.

E quis lavar-me – primeiro por fora, depois por dentro – mas nada se me saía. Ele estava aderido em mim: era uma graxa, uma mancha, era uma tatuagem. E a sujeira dele era eu sendo suja, a presença em mim da certeza da sujeira dele me encardia toda.

E quis matar-me. Primeiro por fora, mas faltou-me ímpeto; depois pelas bordas, mas falhei-me e fui mal entendida, fui mal atendida e menos-existida, dali por um tempo que eu sabia sem volta; e enfim por dentro: matei-me por dentro, desreconhecida de mim, uma estranha no fundo dos espelhos a olhar-me descrente, resignada e distante.

E entendi-me cansada. Eterna, mortalmente cansada. Hesito em ser, e perco o passo a ver-me ultrapassada de mim. Estou, e estarei sempre às minhas costas, atrasada para o tédio que minha vida é, e que acontece sem mim.
Uma sombra de mim. Enfim.

E por isso estou aqui. Não para avisá-lá,  pois não há de que avisar. Não para roubá-lo de ti, pois já não sou e não há em mim com que ter.
Não. Estou aqui para que ele me mate, pois que já não será crime, mas desenlace de uma morte já ocorrida.

Que ele me mate, enfim. Não por mal, mas por mim.

Ele está? Pode chamá-lo por fim?

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