Mergulho de Kukh rumo a um passado atual

Se quiser que isso funcione, preciso fazer direito, então acho melhor ir direto ao ponto: estou aqui para me livrar da Michele.

Amo, ou amei, ela; é justamente por isso que não consegui me livrar dela ainda. E preciso – definitivamente, preciso me livrar dela; a essa altura, parece uma questão de vida ou morte.

Uma digressão, aqui: nunca imaginei que a privação de sono pudesse provocar tanto estrago. Faz oito dias que não durmo, e em oito dias caí de onde estava (que certamente não era o céu) em linha reta em direção ao inferno. Não consigo me concentrar direito (escrevi concretar, aqui, quando ia escrever concentrar… engraçado), estou suando frio enquanto anoto essas linhas. Já não consigo comer, e mesmo assim vivo com ânsia de vômito, e de vez em quando vomito. Comecei a ter alucinações auditivas, e não tenho tido forças para tomar banho em pé.

Ridículo.

E isso tudo em oito dias.

Começou, claro, depois da morte dela. Eu reparei, um tanto orgulhoso de mim mesmo, que eu era a única pessoa ali velando a Michele. Tinha outras pessoas ali, claro – mas estavam ali por conta de uma função: os familiares (o pai não foi, que eu tenha visto); o diretor da Letras; o tal Rafael.

Aí eu comecei a pensar que eu era a única pessoa ali que a conhecia de verdade. E enfim me veio a constatação do óbvio: ninguém conhecia ela de verdade.

Isso me atormentou. Ela não tinha deixado carta, nem nada. Os únicos bens que ela deixou foram o notebook e o smartphone, e pelo que eu reparei a família não tinha nem atinado com isso, ainda – todas as coisas da Mi ainda estavam ali no quarto dela, no Residencial Universitário.

Foi aí que eu comecei a perder tudo. Saí do enterro assim que começaram a “bater a laje” por cima do caixão, como diria ela mesma (a gente sabia que cerimônias como aquela não eram em benefício do morto), e peguei o ônibus de volta pra cá. Já tinha mandado mensagem pro Toco, dizendo que os pais dela pediram pra eu guardar as coisas dela comigo, pra evitar que a Assistência Social voltasse lá e revistasse a porra do quarto pra levar os documentos dela (“da outra vez a gente tinha segurado as pontas, mas eles poderiam, sei lá, vir com a Polícia Universitária dessa vez… e aí, como ficava?” Claro que o Toco iria dobrar com essa).

Quando encontrei com o Toco e peguei as coisas, já estava medindo na minha cabeça as senhas mais prováveis para chegar até o e-mail dela. Por sorte, ela nunca tinha habilitado verificação em duas etapas, então eu acabei conseguindo acessar o e-mail a partir do meu celular, mesmo (no fim das contas tinha a ver com “casadeteotonia”, que era o que eu supunha). E, bom, com a senha do e-mail, desbloqueei o celular e o notebook; daqui pra frente, é só descida.

Vou resumir a história, porque isso aqui não é um romance: a Michele claramente foi se perdendo desde que foi visitar a tal vó Teotônia, da zona rural de Soledade. Ou melhor: a visita foi o auge desse processo de… enlouquecimento, será? Enfim… desse “processo” que começou quando ela decidiu estudar as próprias origens.

Acho que o professor Arnaldo não ajudou em nada, também. Ele poderia ter sido a favor, e poderia ter sido contra, e acho que qualquer uma das coisas teria sido difícil pra ela; mas ele ficou nesse processo estranho de apoiar e oferecer recursos, aí depois se assustar e sair recriminando a ela e à decisão dela de mudar de tema de pesquisa… isso, em si só, acho que já teria sido enlouquecedor. E aí, os e-mails dele… cara, que coisa maluca – com certeza foi uma das coisas que me perturbou nesses dias. Ele foi adotando uma escrita meio elíptica, confundindo as histórias da Michele, da Teotônia e da tal Irmgard, bisavó dele mesmo, de um jeito que eu achei meio doentio. Só que isso claramente fascinou a Michele – as respostas dela não ficavam devendo nada, eram tão perturbadoras quanto.

Mas, no caso dela, tem um “antes” e um “depois” da ida a Soledade, e esse salto o Arnaldo claramente não conseguiu acompanhar. Não estou com condição psicológica de entrar no detalhe, aqui, mas o fato é que a escrita dela depois da visita adotou um tanto desse estilo neolinguístico que a Teotônia aparentemente usava; adotou um pouco das obscenidades, também (ainda que dê pra sentir, no fundo das linhas, o lado pudico da Michele “segurando a linha” de um jeito que a Teotônia certamente não faria).

Fui lá no e-mail dela buscar uma passagem que me pareceu particularmente marcante, num dos últimos e-mails pro Arnaldo. Dá pra ver que a preocupação com a dissertação praticamente sumiu, e o tom “louca profética” já tomou conta de maneira praticamente absoluta. Enfim, colo aqui o trecho:

Você devia saber, Arnaldo, que a tristeza é a buceta de dentro da qual o futuro vai vir – só que ele só consegue vir se for arrombando essa buceta, porque ele é muito maior do que ela. Acho que só uma mulher consegue suportar esse tipo de dor, e acho que tem muita mulher que não é mulher o suficiente para tanto. Eu mesma não sei se terei essa força – mas acredito que esse é o caminho que me aguarda, e se a Universidade não estiver pronta para isso, ela que siga sendo essa pastelaria de fiasco ao molho magro, pronta para amolecer os miolos e pronta para abortar pelos cantos aqueles que não se anestesiam o suficiente para jogar o jogo.

Depois disso ela menciona alguma coisa sobre a prorrogação de prazo, e diz que “o trabalho está andando” (suponho que tenha tomado alguma coisa entre essa parte mais “inspirada” e a seguinte, mais comedida). Pelo que vi, por sinal, o trabalho não estava indo para lugar algum – o arquivo da dissertação era basicamente o modelo ABNT do site da biblioteca, e todo o material relevante estava no “diário de campo” de sua visita a Teotônia.

Eu procurei por tudo alguma foto da Teotônia. Imaginei que isso poderia me ajudar a dormir, já que claramente o que me impede de dormir é esse pensamento difuso que mistura a Michele, a Teotônia, o suicídio, a loucura e aquela lembrança estranha que ficou comigo do que minha mãe disse sobre a velhice da mãe dela, no período mais caótico do Alzheimer.

Eu acho que minha mãe se culpa, em alguma medida, porque deve supor que o incêndio que matou a mãe dela foi devido ao Alzheimer, que ela mesma viu, e viu que estava avançado, mas não soube o que fazer a respeito, e por isso não fez nada.

!

Nunca tinha pensado nisso antes – essa história de “escrita automática” talvez funcione, mesmo.

(Não está sendo 100% automática, preciso confessar – mas juro que estou tentando ao máximo evitar elaborações, e estou começando parágrafos assim que o impulso vem, mesmo que não saiba o que vai sair).

Lembrei do curso de escrita criativa do Emiliano, agora; e lembrei do que ele disse sobre o livro dele – o do Prêmio São Paulo, dos hipopótamos do Escobar. Foi ele quem mencionou esse recurso “exploratório” da escrita automática pela primeira vez – e foi ele quem disse que nada do que escreveu desse jeito apareceu no livro publicado, mas que sem aquelas investigações ele não teria chegado em nada.

Acho que eu mesmo imagino a vó Teotônia um pouco como os hipopótamos da Colômbia: um ser paquidérmico, tão lento quanto assustador, fruto de um esquecimento tão estúpido quanto imperdoável. Um testemunho sobre a vulgaridade absurda da violência, e seus efeitos estéticos.

… que cazzo será o efeito estético da violência?

A vulgaridade da Teotônia! Claro… a Michele falava muito sobre a vulgaridade da Teotônia, depois que ela voltou. Lembro de ela dizer que a Teotônia era uma mistura de Estamira com Nietzsche, Jack Sparrow e um tanto do Seu Lili da Terça Insana. (Mano, a Michele era foda… puta que o pariu…).

Fiquei uns vinte minutos sem escrever, aqui. Estou retomando agora porque me veio um pensamento que senti que era daqui (desse texto estranho aqui): acho que parte de mim acredita que eu deveria, de alguma maneira, seguir vivendo o que quer que fosse que a Michele estava vivendo.

É bem bizarro, mas faz todo sentido. A Michele estava claramente às voltas com esse processo da “subjetividade às marteladas”, articulando a historia da Teotônia com a violência a que foram submetidos os imigrantes alemães quando vieram para o Sul do país, e associando isso, por sua vez, às violências próprias do Brasil (as mais distantes, como o genocídio dos povos indígenas e a escravidão secular, assim como as mais próximas, como o sofrimento dos universitários e a violência no contexto da ressurgência das mentalidades fascistas no imaginário popular).

E a verdade é que ela ficou muito mais próxima de mim nesse período – foi quando nos aproximamos, a bem da verdade.

Eu supus, em princípio, que eu fosse o “chaveirinho de inclusão” dela: o negro que não se adapta no mundo universitário e tenta sumir, par perfeito para a alemãzinha nota querendo ser progressista.

Acontece que essa conta começou a não fechar, porque eu sentia que ela tinha uma conexão muito intensa comigo, que não era só necessidade de aceitação genérica. Lembro de como ela olhada fundo nos meus olhos, e dizia aquelas coisas que eu não entendia, e a gente ria junto quando eu dizia que não estava entendendo, “Tudo bem”, ela dizia, “estamos nessa juntos, eu posso entender uma parte disso por você. O que você não entender, e estiver te fazendo mal, você põe pra fora, que aí eu mastigo de novo e te devolvo mais amassadinho. Como a mãe passarinho com seus filhotes”.

Voltei (estive cinco minutos com o arquivo minimizado). Quando escrevi esse último parágrafo tomei um baita susto; aí esse baita susto me deu um enjôo repentino, e eu fui vomitar. Saí de lá e liguei o computador dela pra checar aquilo que disparou meu susto inicial: um arquivo que estava na área de trabalho, bem no meio da tela, intitulado “Ao querido Cuquinho”.

Até então, eu não tinha pensado em abrir – afinal, se eu não sabia quem era Cuquinho, não me parecia que eu tinha o direito de abrir, e ela nunca me chamou de Cuquinho nem nada do gênero, então não imaginei que poderia ser para mim.

[Eu sei que invadi celular e note dela, mas fiz isso por ela, e não por mim; então tentei cercear o que poderia ser curiosidade ou bisbilhotismos de minha parte, focando mais no que poderia ter a ver com a trajetória dela, onde ela foi, por assim dizer, interrompida].

Só que a carta era, sim, para mim – pelo visto eu virei, aos olhos dela, o Cuquinho.

Não faço ideia de como isso aconteceu, e confesso que fico um tanto assustado. Eu lembrei do arquivo do Cuquinho por conta da lembrança anterior, sobre a mãe pássaro e seu filhote. O que me vem à mente, agora, é que ela se imaginou, em alguma medida, a mãe pássaro alimentando o Cuco, o filhote de passarinho que não é “cria” dela, mas que ela está alimentando (com suas próprias coisas).

Pelo que já ouvi dizer (e pelo que li na internet, agorinha) o Cuco é uma espécie de ave parasita – a fêmea põe seus ovos no ninho de outro pássaro e vaza, aí aquela mãe-pássaro fica ali alimentando o filhote de cuco, que ela acha que é filhote dela. Acontece, inclusive, de essa fêmea vir a morrer, porque às vezes o filhote de cuco nasce num ninho de uma espécie menor, então a mãe-parasitada fica ali se desdobrando pra alimentar um filhote que tem o dobro do tamanho dela.

Aí ela vai vomitando tudo que come, e vai comendo tudo que pode, e morre de exaustão.

Putz… acho que comecei a entender onde isso tudo está indo, e não estou gostando nada disso. Enquanto eu deixo essa tal escrita automática trabalhar, o que está acontecendo é que estou virando o “Cuquinho”, filhote do “Cuco” (que é a Michele), ela mesma parasitada pela Teotônia – que, só posso crer, foi ela mesma parasitada por alguma outra coisa.

Toda uma dinastia de parasitas – pega essa, George RR Martin.

A própria Michele, a confiar na escrita automática, foi tragada pela força parasítica desse cuco-ancestral – como se fosse a buceta-tristeza que, se não for arrombada para parir o futuro, acaba virando uma draga que engole tudo em direção a algum passado abismal.

Mas a Teotônia não se matou… por que será? Não sei, óbvio – mas pode ser que ela tenha se “enganchado” na loucura, e com isso ela ficou numa espécie de curva de rio nos contornos dessa buceta-tristeza.

Jesus, que imaginário mais horroroso. Falta senso estético para esse Cuco ancestral.

(Fico imaginando que o Cuco ancestral talvez seja uma espécie de deus egípcio – entre aqueles vários deuses com cabeça de gato e de passarinho, talvez algum deles seja o deus Cuco. Eu acho que chamaria ele de Kukh, o deus-buraco-negro).

 Agora… eu mesmo não tenho nenhum interesse em enlouquecer, nem em cometer suicídio. (Foi mal, Michele). A boa notícia, nesse sentido, é que eu estou nesse exato momento sentindo fome – coisa que eu não senti nos últimos sete dias, desde o café da manhã do dia seguinte ao enterro. A má notícia, nesse mesmo sentido, é que essa fome parece indicar que essa teoria maluca que a escrita automática está desenvolvendo talvez faça algum sentido, e eu vou ter que lidar com as terríveis e maléficas forças de Kukh. Haja paciência.

Bom, firmo aqui um compromisso comigo mesmo: haja o que houver, não vou escrever e-mails estranhos ao professor Sérgio falando sobre a buceta da minha avó, e não vou mudar meu tema de pesquisa: sigo firme, na Linguística, estudando as expressões do indizível.

E vou evitar (conforme possível) enveredar em investigações sobre a Teotônia ou sobre a minha avó materna e o Alzheimer dela.

Encerro por aqui essas anotações perturbadoras, porque vou aproveitar essa fome que bateu e o horário que ainda me permite aproveitar a janta do bandejão. Vou colar o texto da carta ao “querido Cuquinho” num arquivo paralelo, só por espírito universitário (vulgo “vício em Ctrl-c +Ctrl-v”).

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