Flora Jair

Eu acordo estranhando o fato de ter dormido – mas com certeza dormi, porque a dor nas juntas, nas costas, no abdômen, no rosto, no corpo todo lateja de um jeito certamente mais nítido do que alguns segundos atrás.

O cheiro de umidade me enoja, uma vez mais. Desde quando será que estou aqui? Parece que foram dias, mas pelo que já li sobre a ditadura, as salas de tortura e tudo o mais, acho que o mais provável seja que ainda estejamos no domingo.

Que será que está acontecendo no mundo lá fora? Não ouço nada (além de um gotejar irritante em algum canto da sala e o ruído de lâmpadas incandescentes sem manutenção).

… e uma tosse.

Tem alguém aqui!

Mas a pessoa não bateu a porta, não me xingou e não me bateu, então não deve ser o “Petúnio” (de onde será que tirei esse apelido? Ele claramente não gostou).

Deve ser o “bon cop”. Finalmente – nos filmes o bon cop é o que deixa a gente falar.

– Boa tarde, senhor – arrisco.

– Boa noite, Armando. Dormiu bem?

Claramente, é o bon cop.

– Não muito – não me adaptei bem com as cordas e o assento duro, acho – eu costumo preferir colchões moles, lá em casa, e em geral não uso cordas.

Ele exala um tanto de ar pelo nariz, como quem dá uma leve risada.

– Imagino que tenham lhe explicado por que está aqui e quais nossos interesses em sua presença, não?

– Olha, na verdade não, mas eu não tenho muita dúvida – tem a ver com o Eduardo e a coisa toda do vídeo “Flora, Jair”, né?

– Sim. Na verdade, e mais especificamente, queremos sua ajuda para entender a situação, para estruturarmos a melhor estratégia para organizar as coisas e evitar ameaças desnecessárias às eleições e instabilidade na vida institucional de nossa Pátria.

Ele é realmente cuidadoso – e estudioso: alguns desses termos apareceram em colunas recentes que publiquei, e ele se adequou à lógica que eu atribuí aos agentes do governo na Abin. Ele me conhece, e se preparou.

– Entendo. Bom, o senhor parece acompanhar meu trabalho. Fico lisonjeado. Será que vocês não têm como verificar minhas atividades? Digo, minhas atividades nos últimos dias? Pergunto porque se vocês puderem, vocês vão ver que eu não teria condições de ajuda-los.

– Por que?

– Bom, porque o meu encontro com a flash mob

– Milícia terrorista, senhor Armando. Por favor.

(… ele estudou, e é cauteloso, mas é claramente um bom funcionário).

– Sim, sim. Então: vocês devem saber que meu encontro fortuito com aquela cena, bom, ele foi fortuito. Eu não tive papel naquilo.

– Você divulgou.

– Eu fiz uma coluna a respeito. É meu trabalho, senhor.

Ele bufou – acho que ele não gosta muito do meu trabalho.

– Você acredita que tudo que você fez foi divulgar? Ou há algo mais que gostaria de dizer em sua defesa?

“Em minha defesa”… parece que a situação é ainda mais delicada do que eu imaginava.

– Como disse, acho que vocês têm recursos para saber…

– A extensão de nossos recursos não está entre os assuntos de que trataremos hoje, senhor Armando.

– Claro. Mas como eu não sei o que sabem, não sei o que devo dizer.

– Aja como se não soubéssemos nada, senhor Armando, e conte-nos tudo. Ao mesmo tempo, imagine que podemos confirmar tudo que disser.

– Você quer que eu conte tudo? Tudo o quê?

– Tudo relacionado a sua participação nessa tentativa de golpe.

Efetivamente, a situação é ruim. Sei que pode me doer bastante, mas preciso tentar:

– Se você está requerendo um depoimento, gostaria de solicitar a presença de um advogado que me represente.

Ele fica em silêncio – uns segundos, acho, que parecem horas. Estou me segurando para não retirar meu pedido. Não posso retirar meu pedido.

Ele se levanta; eu ouço o farfalhar de sua calça.

Não posso retirar meu pedido. Preciso aguardar sua resposta.

Ele põe a mão em meu ombro.

Está atrás de mim.

Como ele fez isso?

– Senhor Armando.

Mais um silêncio infinito de alguns segundos.

– Conte, com a maior precisão possível – mas sem ofender nossa Pátria, se for possível – seu conhecimento, entendimento e participação nesse tumulto. Não omita nada.

Um silêncio.

– Você não está em julgamento.

Ele não fez referência ao advogado. Mas o recado está claro: minha situação aqui não é legal, minha detenção não é legal, e a Justiça não pode me ajudar agora.

Não imagino outro caminho, preciso contar a história.

– Certo. Bom, vamos lá. Por onde começo?

‘ Eu fui a um café próximo à minha casa, onde tenho ido escrever nos últimos meses quando meu filho está em casa – como você deve saber, tenho evitado o escritório desde o incidente de março…

Ele fica quieto. Vou mesmo precisar fazer o tal relato.

– Estava, então, no café, um Starbucks ali na Campinas. Eu não vi quando a pessoa que fez a gravação chegou, estava escrevendo. Bom, não estava escrevendo ainda, estava procrastinando – e-mails, etc; mas estava concentrado no que fazia. Enfim: não vi o cara gravando, e não ouvi quando o atendente chamou “Flora pela primeira vez”. Mas quando ele chamou pela segunda vez, a primeira vez em que usou a expressão “Flora Jair”, como se fosse o nome completo de alguém, eu estranhei, acho; sei que chamou minha atenção, e eu olhei. E foi aí que reparei na cena toda – isso inclusive aparece no vídeo, bem no canto da tela, dá pra ver claramente que eu estou me dando conta da situação só naquela hora.

– Não relate o vídeo, senhor Armando, relate a sua participação.

– Certo, certo. Bom: o atendente chamou alguém, “Flora Jair”, e a expressão chamou minha atenção. Olhei para o atendente e reparei no grupo, justamente na mesa ao meu lado – todos com aquela máscara, do personagem “V” dos quadrinhos do Alan Moore…

– Do filme.

– Não, não – o filme é a adaptação de uma série em quadrinhos, criação do Alan Moore, com o mesmo nome do filme, “V de Vingança”. Enfim: estavam todos com a máscara do “V”, e começaram a entoar “Flora Jair”, inicialmente como quem procura pela pessoa, “Flora”, e aos poucos “agrupando” os chamados, engrossando, como um coro que se forma, uma invocação. “Flora, Jair!”, “Flora, Jair!”. E aí entrou a outra pessoa, claramente uma mulher, também vestida com a máscara do “V” – suponho que ela fosse a “Flora Jair”, no caso. O câmera (que também usava uma máscara, mas não era do “V”, era uma máscara de porco, cobrindo a cabeça toda. Ele filmava usando um celular, acho que era da Apple), o cara acompanhou a entrada da moça, a “Flora”, e acompanhou enquanto ela caminhava até o balcão e pegava a bebida. O atendente, coitado, estava em choque, não falava nada. Aí ela pegou a bebida, caminhou até o centro do salão, onde os outros “V’s” já estavam em posição, e aí fizeram a dancinha…

– “A” dancinha, senhor Armando?

– Sim, aquela dancinha…

– “A” dancinha, você disse. Você já a conhecia?

– Não, vi pela primeira vez ali, ontem, no Starbucks.

– Você falou como se a conhecesse. Foi você que a elaborou? Foi você a ensinou ao seu filho?

Cacete.

Filho da puta.

O Pedro!

O Pedro fez a dancinha, meu deus do céu!

– Não, amigo, pelo amor de deus…

– Não sou seu amigo, Armando.

– O Pedro não fez nada! Eu não fiz nada! Pelo amor de deus, amigo…

– Senhor Armando.

Eu preciso me acalmar.

– Vocês estão com ele?

– Você acha que deveríamos estar, senhor Armando? Acha que ele é uma ameaça à nação, como o senhor?

– Pelo amor de deus, am… senhor; senhor, eu não sou uma ameaça à nação.

– Não cabe ao senhor avaliar isso, Armando. Responda à pergunta: o senhor ensinou a dança a seu filho? Tinham combinado o programa?

Senhor amado!

– … não. Eu não conhecia a dança, senhor, e não a ensinei a meu filho ou a ninguém; eu mesmo não saberia fazer a dança.

– Sua coluna foi ao ar apenas uma hora após o vídeo começar a ser disseminado – o senhor já tinha o texto pronto?

– Não! Olha, vou retomar o relato, pode ser?

Silêncio.

– Como disse, eles fizeram a tal da dancinha – foi a primeira vez que a vi, e a única vez que a vi inteira; depois disso, claro, apareceram alguns vídeos em meus feeds, então devo ter visto trechos sendo executados aqui e ali, por uma ou outra pessoa, mas a única vez que assisti à dança toda foi ali, no Starbucks da Campinas, sentado com meu laptop, meu muffin e meu café duplo. Eu estava com a entrega da coluna atrasada…

– Isso acontece com frequência, senhor Armando, não deve ser algo perturbador para o senhor.

Cacete, eles acompanham meus e-mails.

– Sim, isso é frequente – mas por conta disso eu estou sempre atento a oportunidades, e naquele momento vi que poderia escrever e entregar uma coluna rapidamente. Por isso pedi ao “porco” da gravação se eles iriam postar o vídeo; ele não soube responder, mas uma pessoa do grupo se aproximou e, nitidamente tentando distorcer a voz, me disse que sim, e que me passaria o link. Pegou meu telefone, passou um link, juntou-se ao restante do grupo e saiu.

– Você viu essa pessoa quebrando o celular? Foi você que a instruiu?

– Não! … claro que não. Eu só perguntei se poderia citar a fonte, mas sabia que ela se recusaria (como se recusou), e eu, de qualquer forma, não precisaria citar fontes para uma coluna, então não me preocupei. E, honestamente, não me ocupei mais deles: eu já tinha a base para minha coluna, poderia escrever aquilo logo e aproveitar o resto da manhã.

– Foi você que orientou o senhor João Silveira a publicar o conteúdo sem a autorização prévia do editor-geral do portal?

– Quê? Não, não “orientei” ninguém a nada. Enviei o material ao João, com cópia aberta para o editor, como de praxe. Eu sei que o João tem um arranjo informal com o editor, e que material atrasado sobe para o portal antes da aprovação do editor.

– Você tem provas sobre esse arranjo?

– Não, amigo, cl…

– Não sou seu amigo, senhor Armando.

– … certo. Bom: eu não tenho “prova” disso, mas sei que acontece porque já tomei bronca do editor mais de uma vez. Alguns meses atrás, inclusive, minha coluna foi retirada do ar, vocês certamente sabem disso – é por isso que eu não vou mais à redação, inclusive.

– Sim, sim. Senhor Armando [silêncio dramático]: o senhor conhecia algum dos terroristas?

“Terroristas”… meu deus do céu.

Calma. Preciso manter a calma.

– Não, senhor – não conhecia, não sei quem são, e não vi o rosto ou reconheci nenhum deles.

– O senhor está certo do que está dizendo, senhor Armando?

Putz…

– Senhor, estou certo de não ter visto o rosto ou reconhecido nenhum deles. Eu não sei se conheço algum deles, porque eu efetivamente não os identifiquei, de forma que não sei quem são, e por isso não sei se os conheço.

Ele fica em silêncio.

Cacete! O Pedro! O Pedro mandou seus amigos lá, porque ele sabia que eu estaria lá, e sabia que teria chances de o vídeo repercutir.

Puta merda! O Pedro era o “porco”! Por isso ele não quis falar!

– Senhor Armando… o senhor conhece a identidade de algum dos terroristas? Há algo que queira dizer sobre seu envolvimento no caso?

Que eu faço, meu deus?

– Senhor, creio ter sido o mais verdadeiro possível em tudo que te disse. Depois que enviei o material, deixei o assunto de lado e fui até uma livraria, também perto de casa, onde tinha encomendado um livro que queria ver se já tinha chegado. Não olhei para meu celular porque prefiro não acompanhar as reações imediatas às minhas colunas…

– O que te preocupa quanto às reações?

– Minha ex-esposa, principalmente. O editor, também, mas em relação a ele eu fico dividido, porque se ele for derrubar mais alguma coisa seria bom que eu visse, em termos profissionais…

– Você sabia que ele derrubaria sua coluna?

Hm…

– Não. Na verdade, eu imaginei que poderia acontecer, porque entendi que era um material provocativo, e sabia que o clima na redação estava tenso…

– Como?

– Eu me comunico com a Janaína, do financeiro…

– “Se comunica”?

Meu deus, eles sabem tudo!

– Sim, senhor, eu me comunico. Nos encontramos, eventualmente. É através dela que recebo notícias sobre o ambiente na redação, e por notícias que ela trazia eu supunha que a coluna poderia ser rejeitada.

– Você atrasou a entrega deliberadamente? Tinha combinado a publicação não autorizada com o senhor João Silveira?

– Não, a… não, senhor, não atrasei deliberadamente, nem tinha combinado nada com o João. Muito tempo atrás ele me sinalizou que publicaria independentemente da aprovação do Faria…

– “Faria” é o senhor Adalberto Faria, editor-geral?

– Sim, isso mesmo. Então: ele me sinalizou que faria isso, mas isso já faz muito tempo. Desde então eu sei que ele faz isso eventualmente, dependendo de como estão as entregas. Sei que o Faria – Adalberto Faria – não deve ter gostado de ele ter subido um texto meu – principalmente esse – sem aprovação, mas eu mesmo não tive participação nisso.

– O texto é seu, senhor Armando – você certamente tem participação nisso.

– Sim, senhor, o texto é meu – mas tudo que fiz foi entregar uma coluna, que escrevi a partir de uma ideia que me veio de sopetão… [ele expirou, aqui, como quem ri com escárnio] … e seguir com minha vida.

– Você não calculou a repercussão que seu texto poderia ter?

– Am… senhor, eu não tinha ideia da repercussão que teria. É claro que meu trabalho envolve a promoção de engajamento, então eu supunha que o texto pudesse, sim, repercutir. Mas não imaginava que a coisa pudesse tomar essa proporção toda.

– Foi você que encaminhou o material à Anitta?

– ?

Silêncio.

– Não, senhor, eu não encaminhei à Anitta. Eu não tenho contato algum com a Anitta, nem a acompanho nas redes sociais.

– Tem certeza do que está dizendo, senhor Armando?

Vixe, verdade!

Nossa, eles de fato sabem tudo!

– Não, o senhor tem razão: eu sigo o perfil da Anitta nas redes sociais, sim – mas não lembrava disso, foi um lapso.

– Significativo, não?

– Acho que não, senhor.

– Certo, registrada sua recusa. Sugiro que se comprometa com o rigor em suas próximas afirmações, senhor Armando, e evite “lapsos” que possam complicar ao senhor ou aos seus.

Merda… eles de fato estão com o Pedro!

Ou ele quer que eu pense isso… será?

Bom, estou às cegas, aqui (literalmente, por sinal). Não tenho opção.

– Senhor, não há muito mais a dizer. Eu entreguei a coluna, segui com minha vida, e só depois tive notícia da repercussão.

– Qual a “notícia” que teve, senhor Armando?

– Você sabe, senhor – digo: o senhor sabe, senhor.

– Diga-me.

– Bom, quando cheguei em casa e fui ver as notificações, vi que o Faria tinha ligado inúmeras vezes; vi que a coluna não estava mais no ar, mas havia inúmeras notificações em minhas redes sociais, de tons diversos…

– Que tipo?

– Muita coisa, eu realmente não vi tudo. Milhares de reações, em público e no privado. Convites para eventos, lives, pedidos de aspas, muitas ofensas e ameaças de morte, agradecimentos… de tudo. Já nesse momento, pelo que me lembro, vi que alguém tinha feito um perfil com meu nome no Twitter e no TikTok, e estava publicando centenas de versões da dancinha, conforme elas eram publicadas por aí – como uma espécie de “agregador”.

Não sei mais se estou falando o que deveria.

Não sei mais o que dizer.

Mas não posso parar de falar agora.

Deus me ajude.

– Nesse momento, eu entrei em pânico; pensei no Pedro, mas já tinha visto que ele não estava em casa e, bom, honestamente, eu me acovardei: desliguei o celular, tirei o modem do wi-fi da tomada, fechei todas as janelas, tomei um comprimido de Zolpidem com whisky e deitei, pensando que se dormisse por algumas horas a situação assentaria em algum rumo e eu poderia pensar no que fazer.

– O senhor já contava com o apoio operacional da senhora Janaína Torres?

– Apoio operacio… não! Não, eu não esperava por ela naquele dia – era pro Pedro estar em casa, não era pra ela passar lá! Enfim: eu estava grogue, acho que cheguei a dormir, e acordei com a campainha, ela deitou o dedo no interruptor e só soltou quando eu já tinha aberto a porta. Estava desesperada. Disse que a gente precisava se proteger, ir pra um hotel.

– Proteger-se de que, exatamente, senhor Armando?

– Acho que ela estava com medo de eu ser incriminado de alguma forma. Ela me contou em prantos que o 02 – digo, o Eduardo, filho do presidente – que o deputado tinha atirado num sujeito vestido com a máscara do “V” que apareceu durante uma coletiva; que ele tinha atirado também no Zeca, que tent…

– Você está se referindo ao senhor José Prado, jornalista do departamento de política, seu colega, que tentou interferir na ação de Eduardo em colaboração com o terrorista abatido.

Jesus.

– É… sim, o acontecimento era esse: Eduardo atirou num sujeito e no José, que tinha avançado em direção a ele. A Janaína me contou essas coisas de forma desabalada, em prantos, enquanto juntava meus eletrônicos numa mochila que ela tinha trazido consigo. Eu ainda estava grogue, não estava entendendo o que estava acontecendo.

‘ E foi nesse meio-tempo que seus colegas chegaram.

Silêncio.

Será que ele ainda está aqui?

– O senhor nega participação na organização do atentado à nação, senhor Armando?

Deus do céu.

– Sim, senhor. Digo: eu escrevi a coluna, que esteve no ar por algum tempo; vejo que a repercussão da dancinha e do “Flora, Jair” aconteceu nesse meio-tempo, e a coluna incluía um link e um embed pra visualização da dancinha – então, acho que devo reconhecer essa participação nos fatos de … ontem? De ontem. Mas eu não planejava nada disso, e não esperava por nada disso?

– Senhor Armando, suas colunas e posicionamentos, públicos e privados, indicam claramente que você esperava por isso, não?

– … não, am… senhor, não, acho que não. Eu não sou entusiasta desse governo, e sinalizei meu descontentamento com a gestão algumas vezes e em alguns aspectos. Critiquei o governo, sim. Mas não se pode derivar disso que eu “esperasse” isso – o que quer que seja isso.

– O senhor desejava o fim do governo, e colaborou para um atentado a ele.

– … quê? Não, não fiz nada disso!

– O senhor não tem vergonha de ter usado seu filho para beneficiar sua causa comunista?

– …

!

– Senhor… eu não usei meu filho. Desde anteontem eu não vejo meu filho; não saberia dizer o que ele pensa disso tudo, já que ele quase não fala comigo. Eu não “planejei” nada, e não teria nem como “incluir” ele em nada.

Silêncio.

– … e eu não sou comunista.

Silêncio.

– Senhor Armando, peço que reflita sobre suas ações, e seu papel no futuro da nação. O senhor estará sob nossa responsabilidade pelos próximos dias, e podemos pedir que colabore na gravação de vídeos à nação ou a entidades estrangeiras…

Jesus… estou perdido.

– … providenciaremos alimentação, e o senhor pode repousar nessa cadeira enquanto…

Batem na porta. Parece haver agitação do lado de fora – não sei desde quando isso estava acontecendo, acho que me distraí.

O sujeito abre a porta, fala com alguém. Há farfalhar de papéis, e o bipe de comunicadores analógicos.

O sujeito encosta a porta. Parece ponderar por um instante.

– Senhor Armando, o senhor será liberado, por enquanto. Sugiro que cuide de suas ações, e evite chamar atenção indevida para si. Nos próximos dias as coisas devem retomar um curso adequado, e entraremos em contato novamente. Recomendo fortemente que não tente nada arriscado, e permaneça na cidade.

Parece que alguma reviravolta tirou o poder desse sujeito, e do que quer que ele represente.

– Certo, senhor. O senhor fala em nome de qual instituição, senhor?

– Você esteve sob custódia extraoficial, senhor Armando. Recomendo que não comunique nada do que se passou aqui a ninguém.

– Posso saber seu nome, senhor?

Ele não fala por uns instantes.

– É óbvio que não, porra.

Ficamos em silêncio.

Venha, senhor Armando.

Ele me levanta. Eu sigo amarrado. Me conduzem de volta por alguns corredores e escadas, e então o caminho muda, pelo que consigo me lembrar – me trouxeram por um caminho, estão me levando por outro, agora. Ao longo do caminho há bastante movimentação – máquinas, papel, portas de armários e gaveteiros. Queima de arquivo?

Passo pelo que parece ser uma cozinha – espaço mais amplo, eco de espaço azulejado; o sujeito que me carrega usa botas.

E está com pressa.

Abre-se uma porta com algumas trancas. Ele me conduz para fora do edifício. Chove.

– Senhor Armando, siga em linha reta. Em alguns metros estará em espaço aberto, e encontrarão o senhor. Diga que foi sequestrado, que queriam dinheiro. Diga que levaram seus aparelhos eletrônicos. Depois você verá que levaram também o dinheiro de sua conta bancária, os dólares e as joias de sua avó.

Ele fica em silêncio alguns instantes. Eu quero muito cuspir na cara dele, mas obviamente não posso.

– Nós nos veremos novamente, senhor Armando.

Ele solta meu braço, suponho que esteja entrando. Antes que o outro capanga feche a porta de metal eu ainda consigo dizer:

– Adeus, amigo, e até nunca mais!

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