Lembro de ler na adolescência uma crônica do Mario Prata que me marcou. Ele narrava uma noite em que chegava “meio alto” em seu apartamento e via, da janela, uma mulher dançando, toda insinuante; ele fica ali admirando, admirando – até que se dá conta de que não é uma mulher dançando, mas sim uma samambaia, com suas folhas ondulando ao vento.
O que me marcou na crônica tinha a ver com o talento do escritor – como ele manejou as expectativas e a imaginação do leitor, esse tipo de coisa. Seja como for, o texto ficou comigo, e hoje o texto me voltou à memória porque vi de minha janela, como o Mário Prata autor da crônica viu da sua, uma mulher dançando.
No meu caso, estou certo de que não era samambaia, era mesmo uma mulher – eu não tinha bebido, não era noite, era mesmo uma mulher ali a dançar; mas ela não dançava para mim: estava gravando vídeos dela mesma dançando, suponho que para o TikTok, Instagram ou semelhante.
Então, o que me chamou a atenção foi que, assim como o Mário Prata, eu acabei não vendo a mulher. Digo isso porque o que vi tinha a ver comigo, e não com ela: vi o que achei dela, do que ela estava fazendo, o que diria ou sentia ao ver – olhei pra ela e vi eu, eu, eu.
Tenho percebido quão comum é que nós, homens, façamos isso. Claro que sei que é comum que nós, humanos, façamos isso – mas entre homens e diante de mulheres isso assume conotações particularmente marcadas, violentas, alienantes e insidiosas.
Hoje eu demorei para entender que não tinha visto ela; demorei para entender que coloquei diante de mim, ao ver a cena, minhas opiniões sobre TikTok, sobre dancinhas, sobre a vida em São Paulo e em Pinheiros, etc etc.
Acho que, conforme me dou conta desse tipo de coisa, consigo vislumbrar um cenário onde eu deixe de ser tão auto-envolvido e enxergue, um dia, quem sabe, uma mulher que dança em seu apartamento. Porque ela pode. Para postar no TikTok, ou no Instagram, ou onde ela quiser, ou só para assistir e se enxergar dançando.
Espero que esse dia chegue. E espero que chegue o dia em que mulheres possam dançar sem ser confundidas com samambaias aos olhos dos homens, e possam não dançar, se for o caso, e possam ir e vir, em São Paulo e Brasília e Genebra, em suas casas e nas ruas e palanques e pistas. E eu espero ser homem o suficiente para ter claro, cá comigo, que isso é delas, e não meu.
Um dia, que seja de vocês, e todos os outros dias depois desse; por vocês, cada uma de vocês.