Começou.
O suave tamborilar à janela me convida à varanda, de onde observo a garoa que principia a grande limpeza. Quem passa lá em baixo desapercebe o sinal, abre o guarda-chuva a guardar-se do que a todos parece um aborrecimento primaveril.
Quem mais saberá que começou?
Soará em meio aos povos o velho, continuado trabalho de decifração, ocupado com as imediatezas e pequenezas do cotidiano. Ocupados em discriminar quanto a chuva atrapalha o fluxo, quanto fluxo a chuva leva às represas, quantos dinheiros a chuva faz circular, ocupados em dar-se as mãos, em sublime esquecimento, ocupados de si mesmos aqueles lá embaixo deixarão de ver o principal.
Pois não cederá – não mais.
Não esmorecerá – não mais.
A chuva lavará as impurezas, os dinheiros a circular de mãos em mãos. A chuva insistirá em seu trabalho, atolará os carros, derrubará os postes e as árvores. Não haverá mais previsão, e a visão dependerá do reconhecimento do poder da chuva.
Voltará a haver noite, e os seres noturnos poderão, enfim, voltar a habitar essas terras.
As terras, revoltas, serão tragadas de volta à superfície pelas chuvas.
A lama acorrerá aos borbotões, descendo de todos os morros, subindo de todos os lagos e rios.
Os rios ressurgirão de suas concretas tocas.
E eles chegarão, enfim. Após quarenta dias e quarenta noites, quando a purificação já houver marcado a todos com suas impurezas e trazido a lume a incorreção de todos, quando as ruas forem mares de gente e água e lágrimas, quando os gritos tiverem uma vez mais rasgado as gargantas, insubmissas enfim aos nós que as prendiam e silenciavam, será então que, do sal da terra, eles uma vez mais, uma derradeira vez, brotarão.
Eles que já não têm nome.
Eles que já não têm corpo.
Eles que já não têm lar, ou família, amor ou autoridade.
Eles que já não existiam mais.
Os filhos, os muitos filhos, os tantos filhos do passado sem história.
Estarão por toda parte, posto que desde sempre estão em toda parte: cada parede, cada muro, cada sombra e cada praça, cada prédio, cada vidraça, cada casa e cada loja: tudo sangue deles, seus corpos a sustentar a cidade, a cidade a verter-se uma vez mais no castelo de cartas e engodos que sempre foi.
E então o mar de gente e água e lágrimas será uma vez mais lavado e purificado em generoso batismo de sangue, a verter das gentes ao sabor da cavalgada desses filhos enfim libertos, de si libertos, por si libertos, seus dedos metálicos lançando línguas de fogo, seus olhos vidrados lançando línguas de fogo, suas línguas ferinas entoando loas à terra perdida que habitaram e que se fez maior.
E eles se libertarão de serem a casca da trapaça em que vivemos, e derrubaram os castelos, as praças, os muros e as carcaças, invadirão as lojas e as casas e tomarão os postos e inundarão as ruas. Tomarão a portaria e subirão pelas escadas, em borbotões, lavando os corredores e derrubando as portas, revirando as casas e lançando as gentes pelas janelas e varandas, as gargantas cortadas a lançarem sangue às calçadas, enquanto a chuva, magnânima, tamborila suavemente nas vidraças enfim quebradas.