Nanquim

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Já antes do mergulho, entregue apenas à aparência e à vivência que evoca, já antes do mergulho o mergulho é um mergulho. É que o nanquim é de um negro profundo, é a presença brilhante de uma textura robusta, ostentosa, ciente de si, provocante. Já antes do mergulho, portanto, só pela perspectiva do mergulho, o negrume profundo da tinta convoca e revolve o estômago, evoca as profundezas, atravanca o esôfago e remexe lembranças destituídas dos símbolos que as tornassem pensáveis.

E o mergulho parece, subitamente, de um desatino ímpar.

E se não? E se de volta ao usual, ao rotineiro e conhecido? A tinta em seu tinteiro, ao bico da pena, ao seu ofício escrevente, e as coisas ao seu brilho comedido de sempre, não-negras e não-profundas?

Se não, inaceitavelmente, amplamente impossível, posto que de uma pequenez que já não me cabe – não por coragem, mas por um destino compromisso, incontornável.

E que haja, então, sem mais, sem hesitação e sem volta, o mergulho.

E o nanquim me penetra, de um só trago, uma só golada. É grosso, viscoso e profundo, é um sabor profundo. Sabor de excessos, de uma concentração desmedida – o desmedido do petróleo, o desmedido na cana, o desmedido das centenárias árvores; o desmedido dos navios transatlânticos; o desmedido da maldade humana. A concentração desmedida do nanquim, sua presença ostensiva e incontida, a intensa e incontornavelmente esparramar-se, desde dentro de mim, por tudo que me cerca. E tudo de um nanquim profundo.

À força de um escurecimento pouco dramático, mas muito nitidamente sensível, as coisas se tornam mais foscas ao meu redor, as coisas se tornam enfim coisas – alheias a mim, e pouco domésticas, pouco familiares mesmo. E uma casa se torna incontornavelmente um amontoado de engodos, um amontoado de farsas, falsas farsas a falsear o mundo, desmazelando o mundo de sua mundanidade última, única, enfim perdida e tornada póstuma, às costas de um mundo porco, frouxo e frouxo à volta do meu corpo – e meu corpo do lado de lá do nanquim.

O nanquim, verdade em mim, excesso e retorno de uma história sem nomes e símbolos.

Nanquim, verdade em mim, a sorte-morte negra, incontornavelmente viscosa, incontida enfim.

Nanquim, em mim, enfim, sem mim – posto em termo, termas carnes, falsas ao redor da pústula negra que é a pouca verdade, câncer no centro de uma história contada para o mundo dormir.

Estou lá, e já não sou eu. Tendo mergulhado, estando ao fim, e sendo o fim, pelo mínimo, algum começo.

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