Escatologia de uma nação (a partir do Brasil das eleições 2022)

Construí minha trajetória intelectual, profissional e cidadã tendo como foco e propósito o pensamento crítico, o convite à reflexão e a construção colaborativa do pensamento e do conhecimento.
Nada disso tem muito espaço na atual campanha eleitoral – toda ela irrefletida, desmesurada, pautada por imperativos, escatologias, manipulações e mentiras.
Vivemos um tempo triste e decepcionante, enquanto humanos in terra brasilis.
Claro que isso não é de hoje – tenho claro que o nosso é um país violento, autoritário e injusto; isso é secular, não mudaria mesmo da noite para o dia. Pode bem ser, por sinal, que esse momento horroroso seja uma crise por conta de uma transformação em curso.
Acho, honestamente, que foi assim que começou, mas não é assim que seguiu, e não é assim que está hoje.
Sinto que está exposta como em poucas ocasiões a sanha autoritária, conservadora e reacionária. A ganância predatória pauta os principais dentre os famigerados “big players”, nossos capitães hereditários, que seguem queimando o futuro de todes para comprar mimos para si; atores transnacionais (como as empresas de Big Tech e os bilionários mais propensos a interferir em geopolítica) atuam com propósito semelhante.
Quanto aos candidatos à presidência eles-mesmos… acho a situação toda muito triste.
Acho triste termos que fazer uma escolha como essa nos termos postos, gostaria de poder dizer que o Brasil merecia mais. As campanhas de demonização recíproca, a escalada da violência simbólica e material, o grau de corrosão da trama cidadã, tudo isso atesta pra um momento triste na história já tão triste de nosso país. Para piorar, é bem difícil fazer alguma avaliação razoável sobre as perspectivas de governo em caso de vitória de um ou outro candidato, já que o grau de tensão na política nacional é tão elevado que o presidente, em si mesmo, tem pouca garantia além de desgaste, tarifas de negociação elevadíssimas e turbulência constante. Ainda assim, comento o que vejo em relação às candidaturas.
Lula tem sido associado à manutenção de uma agenda progressista, porque em alguma medida sua trajetória histórica caminhou nessa direção; ainda assim, as negociações e posicionamentos em curso apontam para um governo de compromisso, com inclinação à centro-direita, e com a dimensão mais proposita estando restrita ao combate à miséria, à fome e ao autoritarismo do Estado (o que, vamos combinar, não é pouca coisa).
Lembrando: “agenda progressista”, no jargão político “standard” contemporâneo, significa “aprofundamento da democracia liberal representativa”, com a busca por equidade na agenda representativa (melhores condições de acesso para parcelas da população historicamente alijadas de representatividade política e cidadã).
É sabido, no entanto, que um eventual governo Lula seria marcado de nascença pelo custo elevadíssimo na luta pela manutenção da normalidade democrática – ou seja, ele teria que abrir mão de inúmeras pautas e propostas compatíveis com seu “projeto de poder”, e teria que abrir espaço para inúmeras pautas e propostas ligadas a “projetos de poder” alheios e eventualmente antagônicos ao seu.
Aproveito o fato de ter usado a expressão “projeto de poder” para me posicionar a respeito desse ponto. O leitor provavelmente viu a declaração de Sérgio Moro segundo a qual ele apoiaria o candidato Jair, tendo em vista a oposição ao “projeto de poder do PT”. Pois bem: acho importante não naturalizar a pecha de desqualificação e julgamento negativo associada à expressão – dá pra imaginar o Moro fazendo cara de nojo quando fala “projeto de poder do PT”, e dá pra imaginar que milhões de brasileiros tenham calafrios, imaginando um país comunista e etc etc. Então: acho maduro e acho que seria bom se pudéssemos reconhecer que todo mundo envolvido com política tem algum tipo de projeto de poder – quem não tem projeto de poder e faz política é oportunista ou arrivista, e faríamos bem em julgar que a pessoa não é uma boa profissional na área em que atua. Política é disputa de poder, é isso que se faz ali, de forma que existe um “projeto de poder do PT” tanto quanto existem projetos de poder de todos os demais atores relevantes na política nacional. Isso não significa que a eleição de Lula levaria instantaneamente à criação de um país comunista-gayzista-corrompido, porque não é assim que as coisas funcionam – a eleição de Lula levaria à sua condução ao cargo de presidente, onde ele trabalharia junto com as dezenas de milhares de outras pessoas que fazem parte do jogo político profissional num dado tempo.
Voltando à situação de nossas escolhas eleitorais – no outro córner temos o candidato e atual presidente Jair. O Jair tem sido visto como a opção antipetista, favorável aos costumes e a uma economia que mistura intervencionismo populista com “desestatização” (que envolve, basicamente, maximização dos lucros dos agentes de mercado, redução dos compromissos de Estado e manutenção da burocracia). Também tem sido visto como ameaça à democracia.
Quanto à ameaça à democracia, eu pessoalmente concordo; acho que existe, sim, esse risco, e em dois níveis: um deles é a corrosão à estrutura de equilíbrio de poderes, coisa que já vem acontecendo – enquanto presidente, Jair coloniza o quanto pode os demais atores políticos (PGR, AGU, PF, MPF, CGU, Defesa etc), levando a um estado de coisas em que seu “projeto de poder” vai sendo “empurrado”, poder acima, em função de negociações e truncamentos que desvirtuam todo o setor público. Assim fomos vendo a corrosão da atuação técnica e especializada em todos os níveis do governo, com a substituição dos agentes da burocracia estabelecida em benefício de aliados, compadres, vassalos e buldogues (isso de 2019 até hoje, digo).
Nada indica que ele vá mudar esse estilo num eventual novo governo – e além disso, tudo indica que ele deva redobrar seus ataques ao Judiciário, reduto em que sua atuação foi um tanto restrita em virtude da própria dinâmica de renovação do campo (as “gestões” são mais longas, as indicações do presidente dividem espaço com cargos temporários assumidos por membros da Corte já composta, etc). Nos próximos anos, no entanto, ele conseguiria mais algumas indicações, e com maioria no Senado e no Congresso ele conseguiria mudar o próprio arcabouço legal que dá sustentação à autonomia do Judiciário em relação ao Executivo (conferindo mais “liberdade” para ele e seu “projeto de poder”, no caso).
Mas acho importante não perder de vista um elemento estrutural, mais longevo, da sustentação e do “projeto de poder” que Jair encampa: seu governo atuou em franco benefício do antigo “baixo clero”, sim, mas também dos coronéis em diversos redutos regionais, dos grileiros, do garimpo e da derrubada de florestas – e nisso a gente reconhece um “projeto de poder” que vem desde o século XVI, por essas terras. Jair representa, nessa medida, o colono chucro, aquele que há séculos estupra jovens índias para “fazer família” (é claro que ele não deixaria elas abortarem, no caso), explora e achaca mão de obra para se apropriar de terras e recursos “naturais”, ao arrepio de qualquer tipo de legislação, ameaça e assassina “forasteiros” que questionem seu poder autoproclamado como soberano e patriarca de suas “posses”.
Esse tipo de coisa não é detalhe num país como o nosso: isso abrange, com um ajuste ou outro na composição do cenário, quase todos os níveis de nossa sociabilidade. O vendedor de cachorro quente na saída de uma escola, o líder comunitário de bairro, o lojista, o guarda municipal, o sitiante (dono de sítio, no caso)… onde você olhar, dá pra ver variações dessa mesma lógica de colônia extrativista, e em todos esses casos a defesa da “liberdade individual” e dos “costumes” aparece como chancela à manutenção de um regime em que o sujeito acha que está “tocando sua vida” e “merecendo” o que ele acha que “tem”.
E esse povo todo – Jair incluso – opera como funcionário de contratantes para os quais o Brasil e seus “recursos” são nada mais que isso: recursos. Ou seja: existe um “projeto de poder” em que nosso país, com todos nós junto, operamos como vassalos de nobres senhores que não moram aqui, não conhecem isso aqui e absolutamente não se importam se isso aqui virar um cenário de Mad Max daqui a 10 anos.
E o Lula vai nos salvar disso tudo? Não, amigo, certamente não.
“E por que, então, eu deveria votar no Lula?”, você pode perguntar. Eu te respondo: como eu já disse, eu não pretendo te convencer – escrevo esse texto porque eu preciso pôr em palavras a encruzilhada em que estamos, e o tipo de dificuldade que vejo que nos aguarda.
“E a corrupção? Lula vai trazer a corrupção de volta”, você também pode dizer. Aí eu te respondo: Lula não tem como trazer a corrupção de volta, porque ela nunca foi embora. A bem da verdade, a posição que eu costumo assumir em relação à corrupção é que a gente deveria encontrar um nome melhor pra coisa, porque “corrupção” normalmente remete ao funcionamento inadequado ou ao desvio de função em um determinado mecanismo, e eu não acho que a “corrupção” seja sinal da “corrupção” do Estado brasileiro – o Estado brasileiro sempre foi estruturado de forma a proporcionari e privilegiar vantagens, arranjos, comissões etc etc. Achar que algum herói vai vir e nos salvar da corrupção é como achar que uma onda pode ser grande o suficiente para arrastar o mar de um lado para outro do país e com isso resolver o problema que é o Atlântico – na prática a onda vem, leva algumas coisas, arrasta outras e o mar segue ali, firmão.
[desdobro esse ponto em nome da honestidade intelectual: o que isso significa em termos “prognósticos”? A gente tem que só aceitar que a corrupção tá aí, e vai seguir aí, e pronto? Não: eu acho que a gente precisa lutar para que haja mecanismos de controladoria, investigação, apuração, denúncia e julgamento, e a gente tem que suportar enquanto nação o chacoalhão enorme que isso traz pro país como um todo, e aí aos poucos a coisa ganha algum tipo de estabilidade com um grau menor de corrupção, que é o melhor que dá pra ter (corrupção zero não existe). Mas não acho que isso esteja na pauta, pro momento – o país não tem a menor condição de fazer isso sem ruptura institucional profunda, e eu não desejo isso pra agora, então espero que nada nesse sentido aconteça por enquanto. É meio triste, e pode parecer cínico, mas é como vejo a coisa].
Então, de volta ao começo: vivemos uma situação horrorosa, e uma das consequências pra mim, pessoalmente, é que vi as condições de reflexão crítica e construção colaborativa de pensamento absolutamente corroídas. Na atual condição de campanha, é tudo fúria e força, é tudo manipulação e manobra, é tudo retórica e resistência. Eu não julgo essas coisas por si sós, mas isso me paralisa um tanto, porque eu mesmo construí meus modos de trabalho intelectual e exercício cidadão em outros termos.
Ainda assim, quis por aqui de forma sintética e o mais clara possível o que antevejo, porque eu simplesmente não consigo deixar de me posicionar em alguma medida face a tudo isso que tem ocorrido.
Na verdade, as condições do debate andam tão esgarçados que eu tenho pensado um tanto no “fim” – o que significaria “dar tudo errado”? Um tanto, acho que já conhecemos: um estado de tensão que adoece milhões; um estado de desamparo que deixa milhões com fome ou insegurança alimentar; um estado de insegurança que faz você aceitar condições indignas de moradia, trabalho e educação, e abdicar de qualquer acesso a lazer, expressão e cultura. Outro nível envolve o avanço de coisas que já estão aí, mas causam efeito e estrago cumulativos: condições climáticas cada vez piores, com mais gente morrendo de calor e de frio e nas enchentes e nos deslizamentos e em quadros respiratórios agudos ligados ao ar seco, às queimadas e à poluição. Parece o fim do mundo, né? Ainda assim, eu não sinto que seja o fim do mundo: eu sinto que é um mundo bem ruim pra muita gente, e um mundo que traz um retrato decepcionante acerca dos humanos e de como eles conseguem se organizar para viver e se multiplicar. Talvez, e infelizmente, seja o retrato que mereçamos: por um breve período houve, num dado planeta do sistema solar, uma espécie que desenvolveu técnicas e artefatos altamente sofisticados, multiplicou-se de forma a cobrir todo o planeta e, passadas algumas dezenas de milhares de anos, tão rápido quanto vieram, se foram – o tal planeta seguiu girando, uma fração da vida naquele planeta sobreviveu à catástrofe e vieram outros ciclos, com outras composições, e sem esses tais humanos, seus grandes planos e sua pretensão de superioridade.

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