Escrevi um texto sobre o processo que vivemos no nosso país, um texto longo e comprido e pouco propositivo. Com vosso perdão, pretendo reincidir, dessa vez focando na democracia e no que ela pode significar pra nós por aqui e por agora – quem quiser ver o texto anterior pode clicar aqui.
Retomo e reitero um ponto que me parece evidente: vivermos em uma democracia não significa, em pt-br, que as pessoas contam com amplos direitos, ou que elas têm condições relevantes de interferir nos rumos da nação. O tipo de democracia que temos aqui convive com arbítrios policiais, desigualdade profunda, um tanto de desvirtuamento de instituições – tudo muito longe do ideal.
Ainda assim, o que a gente chama de democracia significa que ninguém tem poder suficiente para fazer o que quiser – todo mundo, em maior ou menor grau, convive com a necessidade de reconhecer poderes, agentes e instituições que limitam os seus próprios poderes. Isso é o que separa a democracia de outros regimes que a gente chama, em bloco, de autocráticos.
Um dos candidatos, o Jair, encampa evidente e explicitamente um propósito autocrático, usando diversos bordões que remetem a esse interesse e sinalizando que em seu entendimento o presidente não deve ter seus poderes limitados por nenhum outro agente. Na prática, isso significou que ele foi construindo suas relações institucionais de forma a garantir que os tomadores de decisões nas polícias, no Ministério Público e nas casas parlamentares não entrassem no caminho de seus planos e projetos; sendo relativista, isso poderia significar que ele compôs interesses e garantiu governabilidade, mas isso significa desconsiderar que o jeito que ele teve de fazer isso foi dobrar o aparelho governamental aos seus interesses e aos daqueles que lhe dão sustentação.
Aqui chego na famosa ideia de que Jair cometeu um “desgoverno”, e não um governo. Como já disse antes, discordo veementemente dessa ideia. Não porque concorde com seu governo ou suas ideias, ou que aprove seu governo – acho Jair um sujeito nojento, tenho ódio dele e do que ele representa e acho seu governo péssimo. Mas entendo que ele não deixou o Brasil à deriva, nem acho que tenha sido incompetente, não: acho que ele foi muito hábil e muito bem sucedido em seu projeto de governo de corroer as instituições, em desconstruir os alicerces do Estado de direito e a infraestrutura que permitia alguma soberania e comprometimento do Estado com suas responsabilidades.
Mas isso não é “desgoverno”: isso é um governo interessado em beneficiar setores específicos numa rotina de extrativismo predatório dos recursos naturais, culturais, humanos, financeiros e institucionais de nosso país. Algumas pessoas chamam isso de “abrir pro mercado”; eu entendo que se trata de corroer a estrutura do Estado e entregar o país a interesses privados e terceiros.
Mas – enorme “mas” aqui – isso não se compõe de forma imediata com a tal ameaça à democracia que o Jair representa, e é aqui que eu acabo divergindo do grosso do barulho anti-Jair. Entendo, sim, que a campanha de Jair representa uma ameaça à democracia, e já falei isso antes. Mas isso não está imediatamente associado à sua agenda – seria possível que um sujeito escroto, autoritário e intrinsecamente corrupto fosse eleito e tocasse um governo que eu acharia abominável, mas é democraticamente previsto que os governos serão considerados horríveis por alguma parcela da população (talvez, inclusive, a maior parcela da população); no caso, um governo ser horrível em “n” aspectos não significa que ele é antidemocrático. O que acontece no caso do governo Jair é que seus esforços de corrosão da infraestrutura do Estado levam a um estado de coisas que torna inoperantes os mecanismos regulatórios, e com isso o poder passa a estar concentrado de forma incompatível com a dinâmica que garante o grau irrisório de segurança jurídica de que o país ainda goza. Assim, o fato é que cada dia a mais em que Jair segue no governo, as condições de exercício democrático no Brasil (que nunca tiveram um limiar lá muito elevado) são um pouco mais corroídas.
“Mas, se ele for eleito, isso é a democracia, não é? Foi a vontade do povo, então é isso…”, você poderia perguntar, e eu te respondo: não, não é tão simples. “Por que?”: ora, porque a democracia precisa de algum grau de estabilidade institucional, e estamos nessa situação bizarra em que um dos agentes sinaliza de forma bastante clara que pretende conduzir seu governo de forma a desestabilizar a máquina e com isso gerar um estado de coisas em que seu governo não é mais regulado pelo sistema de freios e balanços entre instituições, que é o que garante uma democracia com espaço para debate, dissenso, oposição, debate e construção coletiva, via negociação e compromisso; ou seja: temos um candidato numa eleição democrática que deixa claro que pretende destruir o arcabouço que garante a democracia no país, e isso não é parte da democracia, porque a ideia de que “se eu ganhar eu levo o brinquedo pra casa e ninguém nunca mais joga, e se eu perder eu não aceito porque não existe eu perder nessa brincadeira” não faz parte do jogo, não é democracia, e não pode rolar.
“Mas e aí faz o quê? Porque o cara tá fazendo isso…”. Então, deveria funcionar o tal sistema de freios e balanços: TSE impugna a candidatura, ou a Câmara estabelece algum aparato legislativo pra segurar o arroubo do cara, ou alguém protocola um pedido de impeachment, ou a AGU apura algum excesso, ou a CGU aponta/apura alguma irregularidade etc etc. No caso do Jair, o projeto explícito e evidente é tolher esses mecanismos, e isso ele vem fazendo, e já acena que vai redobrar esforços pra derrubar os últimos bastiões de regulação que ainda operam. Então restou, até agora, a lógica do “segura firme”, que é o que tem acontecido entre aqueles que conseguiram se manter trabalhando em busca de um aparato público democrático – o que significou que eles tiveram que suportar abuso, assédio, acossamento, ameaça, violência, negligência, descaso etc etc. Se chegarmos a um estado de coisas em que o Jair foi conduzido pra fora do cargo, e Lula assumir, e conseguir se estabelecer, então poderemos dizer que a tal democracia brasileira passou por um stress-test pra Inmetro nenhum botar defeito, e (mal e porcamente) sobreviveu; lições poderão ser aprendidas, um tanto de reparos de emergências precisarão ser feitos (a começar pelo famigerado orçamento secreto), mas haverá jogo a ser jogado (e oposição a ser feita, porque o governo Lula nesse cenário será um governo que precisará de muita manifestação cidadã e mobilização organizada, muita participação popular para reestabelecimento de uma cultura democrática inclusiva e sonora, sem ameaças e tiros e granadas).
E se o Jair ganha? Bom, aí entra a parte mais dura dessa história toda de democracia: se o Jair ganha, a gente vai ter que amargar anos e anos de luta, condições muito piores de cidadania e um país que provavelmente vai agravar muito a crise que já acena aí no horizonte (já que, a essa altura já está claro, o governo Jair é absolutamente predatório e extrativista, e seguirá escorchando Tesouro e empenhando as calças da mãe dos outros pra rolar dívidas construídas de forma displicente e desorganizada).
Acontece que isso pode estar no horizonte, olhando pra frente como já esteve olhando pra trás: na história do nosso país houve, no grosso do tempo, a luta ferrenha de alguns, que não eram maioria, para conquistar os direitos que deveriam ser básicos e que beneficiariam a maioria. Por muito tempo se teve que lutar para o voto das mulheres, dos pobres, dos negros; se teve que lutar pelo direito à agremiação, à manifestação, à participação; se teve que lutar por transparência, por fiscalização, por equidade, igualdade, distribuição; a lista seguiria. Acho, honestamente, que a maioria dos filhos dessa pátria fogem da luta o quanto podem (eu mesmo fujo – não sou muito de luta, não), mas acaba que a luta se impõe, já que sobreviver e viver e ter direitos e um pingo de dignidade, no mais das vezes, só chega com luta, mesmo.
Então, pode ser que seja esse o caso: luta, por parte de uma minoria, pra resgatar o que deveria ser de direito e certamente virá para o bem da maioria – mas que a maioria às vezes perde de vista, ludibriada ali pelos desejos de um Patrão qualquer (nacional ou importado, algorítmico ou analógico, físico ou virtual).
Um comentário em “A minoria democrática”