A própria forma como eu escuto já é marcada pela expectativa de algum absurdo. Na semana anterior tive a oportunidade de ouvir um eminente defender parâmetros de “gestão de sociedade” a partir do cômputo da perda de anos de vida saudáveis – do ponto de vista da economia? Não! Da gestão do sistema de saúde. Ao ver do excelentíssimo, tratar-se-ia de abordar as doenças tendo em vista seu “impacto social”, que é medido pelos anos de visa saudável perdidos – assim, uma doença crônica que atinge na infância faz a sociedade perder uns 50 anos de vida saudáveis – os 50 anos que este sofrente teria trabalhado se a tal doença não existisse.
Não me prolongo no pensamento, considero a perspectiva absolutamente fascista e desumana.
Em minha formação fui habituado a associar este tipo de postura ao termo “direita”. Ontem, no entanto, tive mais uma oportunidade de questionar este tipo de parâmetro, que tem me parecido cada vez mais insatisfatório para dar conta da realidade sócio-política brasileira. Voltamos, assim, à cena de abertura: eu, sentado, a escuta de antemão desconfiada.
Falava-se, demonstrava-se, e meu ceticismo forte, firme. Quase comicamente, sentara-me ao lado de um conhecido que “comentava” a palestra, orientado unicamente por sua formação, engajamento e participação no PT. A cena me chocava pelo tom pastelão: a uma apresentação eminentemente técnica e “de direita”, intercalavam-se (ou sobrepunham-se) comentários e “traduções” críticas ou “de esquerda”.
Tudo seguia conforme a rotina, de cada uma das partes falava-se o que se sabia, e eu, de minha parte, “sabia” que estava acima de tudo aquilo, que havia superado o engodo das distinções estanques da direita conservadora e da esquerda revolucionária. Tudo ia conforme a rotina… até um comentário.
À minha esquerda, o meu colega – de esquerda – discorda das colocações da palestrante à minha frente – de direita. Ela havia dito algo sobre as escalas para medição de impacto de investimento no tratamento de doenças (“tomemos um sintoma clínico que não faz diferença do ponto de vista político – por exemplo a dor…”): o desinteresse pelas pessoas, o tecnicismo da abordagem, etc etc. E dá um exemplo: “falta coragem para o tratamento frontal dos problemas. O álcool traz prejuízos gigantescos para a sociedade, mas os tucanos jamais enfrentariam essa questão – afinal, como enfrentar os lobbies e a AmBev? Em Diadema impuseram que os bares fechassem às 23 horas e todos os índices caíram 40%…”.
Algo saiu de foco na cena… peraí: esta colocação devia vir de lá, da minha frente!
Explico-me. A idéia de combater as doenças, ajudar os sofrentes, propor mudanças na organização social, tudo isso, vá lá, me parece ideário-base de todos, da direita à esquerda. O que me pareceu estranho foi a defesa, oriunda de um “social”, um “crítico”, um revolucionário, de proposições de controle social policialesco e de inibição de condutas indesejáveis: aí me perdi.
Não vejo, já há algum tempo, o PT como um partido de esquerda, e não é disso que se trata; meu colega é afiliado, mas não é representante, e a ideologia que ele compra e vende e enxerga no PT é a da esquerda – esquerda aqui tomada como tipo, como tendência, como horizonte de organização de discurso. Seja como for, tomo esse colega como aderido à ideologia que divide o mundo em duas metades, os revolucionários e os burgueses, os insurgentes e os opressores, o certo e o errado – e em algum momento parece ter passado por sua peneira uma lógica e um princípio estranhos a esta divisão, como uma gota de óleo que resolve se misturar, como um pensamento do demônio que invade e seduz a clareza consciente de um homem do bem, um homem de Deus, uma ovelha branca.
Será que esse tipo de inconsistência esteve aí o tempo todo? Será que quem divide o mundo em grupos antagônicos e antinômicos, no fim das contas, sou eu, dando-me como defesa um lugar privilegiado e “superior” a tudo e todos? “Such doubts, such horrible doubts”, diria a Irmã Beauvier, do filme Dúvida.
Corta. Segunda-feira. Em grupo de estudos, apresento para discussão um dos textos mais polêmicos que já escrevi, sobre uma postura terapêutica impositiva de que fiz parte e com a qual fui conivente; a idéia era discutir os parâmetros pelos quais legitimamos ou não posturas, criticamos tudo e todos, entendemos o mundo – e que fazemos com isso? como nos posicionamos, como viventes, cidadãos e partícipes da escritura da história? Meu texto era uma provocação e um panfleto: “pensadores e intelectuais, uni-vos – ao mundo de verdade e à árdua tarefa de fazer algo acontecer com mãos e pés”.
A discussão me surpreendeu e causou estranhamento muitas vezes; às vezes sentia que era atacado pelas posturas que assumi – e isso não está no script, posto que eu mesmo parto do pressuposto que as posturas eram fracas e criticáveis; outras vezes, me pegava defendendo alguma coisa que não sei bem o quê – e isso também não me parece preciso, já que toda a idéia é o abandono dos portos seguros e das garantias e a busca de parâmetros e possibilidades no trabalho efetivo com outros concretos, e não na filiação a partidos e ideologias e idéias (ao menos não quando isso é feito de forma abstrata e distante, como se se adotasse uma reiligão).
Será que meu texto não me põe à parte e fora do debate, como alguém que olha e entende e senta e dorme?
O que estaria fazendo?
Que rumo aponto em minhas práticas?
Será que só estava me enganando, e isso tudo é um processo sutil de docilização e adesão à hegemonia e ao status quo?
Such doubts…
Um homem senta, à sombra de uma árvore; não há mais ninguém, até onde a vista alcança.
Ninguém sabe, mas este homem é inteligente demais.
Ninguém sabe, mas ele poderia mudar o mundo.
Ninguém sabe, mas em sua cabeça fazem-se teorias e modelos que nenhum Kant jamais imaginou.
Se soubesse, a própria árvore se curvaria, num gesto reverente.
Ninguém sabe…
Se soubesse, a própria árvore se curvaria em reverência, e sua frondosa copa protegeria para sempre o sábio contemplador,
e sua sabedoria estaria para sempre a salvo das intempéries do mundo
e dos ignotos e selvagens homens comuns.
Os hábitos, as defesas, continuidades, os estabelecimentos, a hegemonia, os costumes burgueses, a tradição, o continuismo, o reformismo, o pensamento sedentário, o ressentimento, o pensamento centralizador… muitos são os nomes do Cão; muitos os riscos de sedução, neste vale de lágrimas que é a luta pela revolução, e pela verdade proletária, e pelo fim da história, e pelo comunismo, e pela defesa do humano e dos direitos fundamentais do homem. Uma batalha contínua se desdobra, e os perigos são muitos; lê Marx! Frequenta o sindicato! Combate os Templos Burgueses e os Maus Homens, os opressores…
Difícil, a busca. Incerto, de meus passos. O erro.
Ressentido da falta de balisas e deuses da na trilha que escolhi e nas intempéries dos caminhos que têm se demarcado às minhas costas, com alguma frequência vejo-me impelido a atacar os bastiões de fortes por que passei, o ressentimento e a raiva por não mais ser o que um dia fui.
As rugas de meu pensamento me levam a crer que os dias passados foram os verdadeiramente alegres; fazem-me pensar que se aproximam os dias em que não mais se cantarão os dias de meu aniversário, e não restará senão pó dos ideais que um dia fizeram, às custas de meu rosto, tantos com que vivi e convivi.
[é comum que eu acredite nas coisas que digo e compro e vendo por aí, do descentramento, do abandono das antinomias, dos sistemas abertos; vez por outra, no entanto, me espanta que seja tomado, tal qual a freira de mão de ferro, moral rígida, extrema-direita e católica, por dúvidas; such doubts… resta por diferença – e não é fácil – que, ao passo que a freira busca um restabelecimento, eu prossiga errando, o sistema aberto
…
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SUCH DOUBTS!!!!!! Que bom que temos dúvidas,incertezas,inseguranças e reagimos ao que nos desagrada,nos agride moral e eticamente.Ainda me sinto assim,apesar de meus quase 60 anos.Quer dizer que estou viva,pensante.
Bjs
B