Ruínas de encontro com Lia

            Engraçado o jeito como ela aperta a banana; a força não é para segurar a banana, e com certeza não se trata de um “não saber a própria força”: ela sabe que está amassando a banana e, aparentemente, gosta disso.

            É… não passou nem um minuto e ela já fez da banana uma espécie de papa mais consistente – o efeito dos apertos misturado com a baba que ela deixa quando põe a banana na boca e tira sem morder, misturado com o calor e o suor de sua mão… aquilo não é mais a banana que a mãe deu pra ela. Aquilo é algo da Lia, o que ela fez pra si a partir da banana que lhe deram.

            Eu lembro da idéia do Ferenczi sobre a apercepção e apropriação dos bebês através da saliva e da baba, como se eles se apropriassem do mundo, como se a baba fizesse daquilo uma coisa reconhecível e assimilável; eu lembro disso e meio me envergonho, toda essa psicanalice e essa racionalização, toda essa intelectualização do mundo… os grandes autores e as frases chiques são como minha baba particular, que eu cuspo no mundo todo para que ele se torne assimilável, compreensível, um mundo todo meu.

            Já hoje vi uma aranha no banheiro. Poderia ter sido uma coisa indiferente, era uma daquelas aranhas que é quase toda patas, finas e compridas, e tem só um nozinho preto no meio, que é ela-mesma – esse tipo de aranha que é sempre representada nos desenhos, ou elegante ou desengonçada. A questão é que estava justamente até então lendo um livro da Clarice, e ela falava justamente dos animais. Na verdade não se trata de “justamentes”, a questão é que minha mente-baba estava fazendo horrores com a Clarice, pensando no Deleuze e no devir-animal e eu, lembrando da Lia e do Ferenczi, pensei ressentido o quão longe estava da tal animalidade e do puro-devir e dessas coisas, estando, por outro lado, bastante envolvido com a psicanálise-aplicada, a racionalização do mundo, os pensamentos grandes e longos e chiques etc.

            A aranha estava lá, e eu lá, mas não do mesmo jeito, de forma alguma: a aranha estava lá-lá, vivendo em sua aranhice, envolvida com seu mundo-próprio, indiferente a frases e gente chique e eu… bom, eu estava lá mas estava também envolvido até o caroço em questões grandiloquentes e tentativas de entender com meu pensamento-baba o mundo e os outros e meu xixi e a aranha-lá e eu mesmo, buscando de alguma forma ridícula uma espécie de animalidade em mim, um devir-aranha ou coisa que o valha.

            Saio do banheiro, volto à Clarice e ela, animalesca mas quase-que-cuidadosa, praticamente afaga meus cabelos e ri maternalmente de meus anseios: acha ridículo, ela, gente que humaniza cachorros e gatos e pensa neles em termos de dó e amizade e querer bem; animais são animais e devem ser tratados em sua animalidade, e a aranha que seja aranhizada em tudo que isso implique. Clarice e sua vida nua, Clarice e sua espetaculante escrita – Clarice baba tão bonito quando apreende o mundo que parece, por um segundo, que a nossa baba está muito bem ali onde esta e, por um momento, toda essa compreensão afoita de tudo se retrai – não a compreensão, mas o caráter afoito, como se ser fizesse possível apreender com um cuidado demorado, no-tempo-da-coisa.

            Curiosamente, os escritores tristes me fazem feliz.

            Lia acabou não conseguindo terminar seu encontro com a banana, porque a toalha de mesa era de pano e as pessoas eram finas e a mãe estava envergonhada e Lia ganha, o que?, um pão de baguete. Cadê sua baba, Lia? Cadê a banana? O mundo dos adultos levou embora, porque se apropriar das coisas no seu tempo e com seus recursos “é porcaria”. Porcaria de mundo adulto.

            O tempo já foi, certa vez, todo o tempo do mundo, e os príncipes distantes, mesmo não sendo compreendidos e não tendo nem corpo-e-rosto-e-cavalo-branco, já foram tudo o que importa. Cerejeiras florescem apenas por uma semana no ano, no calendário dos homens que calculam e dos agentes de turismo e dos horticultores – para a flor e para a árvore e para a planta o florescer se dá, e é bonito, e passa e a flor cai e a folha cai, e é bonito.

            Baba na banana, Lia; baba na banana. Saiba que não há mistério no mundo senão bananas, e babar e apertar e engolir e vomitar coisas vai ser o que será de teus dias, e se a alegria da banana não fizer sentido, o mais provável é que nada mais o fará.

            Acaba que, passados dois ou cinco ou dez minutos, Lia já se envolvia toda com um colar, ou um garfo, ou um guardanapo, e o mundo todo já fazia todo o sentido que um colar ou um garfo ou um guardanapo faz.

W, 2010

Um comentário em “Ruínas de encontro com Lia

  1. estava lá,diante da Lia e de sua “baba”e também refleti muito sobre o que nós adultos fazemos com crianças e outros adultos.Às vezes,por insensibilidade ou sei lá o que,interferimos em processos que poderiam ser tão gostosos,tão marcantes.Não deixe que te tirem sua banana!Curta sua baba!!!!Tenha seu tempo!!!!
    Saudades!!!! b

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