Carta de B.Smirnakoff a Nastasja

| o cartão postal reproduzido abaixo se encontrava sobre a carta; as condições de conservações de ambos eram deploráveis.|

 

                                      Prezada Nastasja,

 Assusta, se disser que ainda a amo? Não tenho como saber, e isso me entristece profundamente.

 Que aconteceu com você? Como foi sua festa de 18 anos? Fez faculdade? Casou-se? Teve filhos? Trabalha? Está viva? Entristeço profundamente – hoje, sou um homem muito triste.

 Sabe que a encontrei recentemente? Ainda hoje. Não sabia, então, que de nada se tratava, senão de grande infortúnio.

 Sei que provavelmente não receberá esta carta e, mesmo assim, sinto-me impelido a explicar… o mais honesto seria contar meus caminhos desde que saí da Rússia; isso, no entanto, seria aborrecido e pouco útil. Retomo meus passos desde a calmaria que prenunciava a terrível tempestade que ainda hoje arrasta meus pilares – resta-me, hoje, pouco mais que sua lembrança e um medo, um horrível medo…

 Acredito que muita gente consideraria como problemática minha saída de Holambra; hoje, olhando para trás, acredito que tenha sido uma decisão feliz – pouco consciente e bastante desastrada, mas feliz.

 Desde que saí de lá (já não lembro que ano foi) pouco parei; estive por inúmeras cidades do Brasil, muitas das quais não sei, ou não recordo, os nomes. Por muito tempo estive disfarçando minha presença, preocupado que estava em romper meus laços com a história que escrevi em meus anos holambreses; nesses tempos, por onde passava inventava para mim um nome, uma história, um destino novos. Errantes eram os dias, meus passos e minhas palavras, vagueando entre os seres como almas penadas, desafetados de si próprios, e eu desafetado de mim mesmo. A depender de meu desempenho na cidade e do acaso, vestia-me bem ou mal, comia ou não, festejava ou dormia sob pontes – sem que as mudanças implicassem em alegria ou tristeza para mim.

 A distância entre mim e Holambra, cada vez maiores, e o meu desapego em relação a mim mesmo e meu destino me levaram, pouco a pouco, a reassumir meu nome de batismo e meus atributos mais salientes; não posso dizer que era um resgate ou um ressurgimento – estes detalhes, a esta altura, já não me convenciam de que eu era alguém e de que a prevalência destes ornamentos em minha história faziam deles parte de mim. Retomei a verdade histórica por pura preguiça. Apenas um detalhe, secundário em princípio, fez-se decisivo: a pintura.

 Há muito não pintava – desde meus dias como membro de um grupo de que tive a infelicidade de participar, em Holambra. Este atributo, este despojo de meu distante passado, retomei-o em conversa com um pintor de rua, em uma feira clandestina em uma cidade apagada em minha memória por completo, salvo pelo pintor.

 Ao conversar com ele percebi o quanto a pintura, o próprio ato de pintar, fazia dele alguém – ele, a depender dele mesmo, provavelmente se chamaria “pintor”, sem mais nem menos – sem nome, sem idade, seria ele O Pintor da Praça de… uma cidade que esqueci o nome. Decidi que eu retomaria minha vida de pintor. Seria Pintor.

  Acho que é importante que você saiba que fui pintor por muitos anos. Quando nos conhecíamos eu quase não me importava com as artes, se pintava e desenhava era porque o mundo da escola e das regras me aborrecia; depois que você saiu da cidade, e muito além, eu me interessei mais e mais pelas artes, e estudava o belo – queria ter o belo em minhas mãos e sob meu controle. A verdade é que se você tivesse ficado na cidade e eu tivesse a coragem de dizer que te queria comigo, que não queria que se fosse, talvez eu hoje fosse um pedreiro ou um  professor primário – um pedreiro ou um professor primário feliz.

  … foi como pintor que cheguei ao Brasil, e a Holambra. Teria sido pintor a vida inteira, se meus passos em Holambra não me tivessem levado a destinos absolutamente distintos e à errância que já contei. Curiosamente, minhas experiências em Holambra fizeram de mim um pintor bastante diferente de todos os outros que já conheci. Mas chego aí, logo logo.

 Onde parei, mesmo? Tendo conversado com o pintor e ficado… emocionado com o quanto ele se reconhecia e tinha paz porque se via a si como pintor, decidi que seria, eu mesmo, mais uma vez, um pintor. Um Pintor. Pensei em começar lá mesmo, na cidade que não lembro o nome (Valença! Estava em Valença.), na feira de artesanato e antiguidades onde o Pintor pintava – mas não consegui, justamente porque não tolerava a idéia de disputar com o Pintor que me restituíra um plano e um sentido o pão de cada dia. E assim segui viagem.

 Daí em diante meus passos já eram um pouco mais meus, e lembro por onde passei; estava então na Bahia (Valença fica na Bahia, aqui no Brasil) e rumava sempre ao Norte – talvez rumo à Rússia, talvez fosse para longe de Holambra, talvez seguisse a orla porque me agradavam o sol e o mar, mas na época não era isso, não sei o que era. E na próxima cidade que parei me informei logo onde ficava a feira de artesanato e fui retomar meu destino – fui pintar, era Pintor.

  Estava muito feliz quando recebi a primeira encomenda – uma paisagem de praia ao poente. Eu sempre fora mais habituado às figuras, era um profissional dos retratos, um retratista, na maioria de meus trabalhos, mas só queria pintar.

 E pintei. Caprichei muito, e tratei muito bem a cliente, porque queria me estabelecer, queria ser Pintor e viver minha vida em paz.

 E ela gostou do que fiz, e na semana seguinte recebi outras duas pessoas, e algumas vieram junto para observar. A primeira delas me pediu um retrato; fiquei muito feliz – estava fazendo as pazes com o mundo!

 Como era bom sentir o corpo leve de preocupações e angústias, sentir-se pintar e sentir o corpo a mover-se, envolvido pelas artes e pelo conhecimento acumulado, sem que eu me preocupasse com nada a não ser aquele momento e aquela… libertação. Nem me vi pintar, nem via o que pintava, era um retratista nato e aquilo saía de mim naturalmente.

 E então ficou pronto. Olhei para o que havia criado com espanto. Fez-se silêncio à minha volta.

 Não havia retratado a mulher que me pediu o retrato.

|A carta reproduzida acima foi encontrada aberta e sem endereço sobre a mesa da residência de Smirnakoff; tudo indica que ela não está completa mas, considerando que ela provavelmente não foi escrita para ser remetida, pode-se especular que Smirnakoff tenha se detido sobre ela apenas enquanto convinha, interrompendo-a quando parou de fazer sentido. Nada disso poderá ser esclarecido, e só nos resta especular.|

[nota: este texto dá continuidade a “Prólogo a Eugenia, …”, que também foi publicado na coluna Speranza, anteriormente. Um terceiro texto, a ser publicado, fecha a série sobre a vida de Boris Smirnakoff, que nunca existiu até eu criá-lo.]

Speranza, coluna 6, 7 de outubro de 2010

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