Eu acordo estranhando o fato de ter dormido – mas com certeza dormi, porque a dor nas juntas, nas costas, no abdômen, no rosto, no corpo todo lateja de um jeito certamente mais nítido do que alguns segundos atrás. O cheiro de umidade me enoja, uma vez mais. Desde quando será que estou aqui? Parece … Continue lendo Flora Jair
Tag: literatura
As botas (e Lino)
As botas cruzadas sobre o banquinho não se ocupavam da réstia de sol a escorregar para fora do alpendre, não. Com o que podiam da atenção, ao sabor da leseira que arrasta o fim de um dia abafado, miravam, sim, o mar de zinco morro abaixo, rebrilhando ao sol como mil peixes esperneando numa tarrafa … Continue lendo As botas (e Lino)
A imperatriz e o Merthiolate
Lembro que, quando era moleque, Merthiolate ardia pra burro. Se você caía e ralava o joelho tinha logo dois motivos pra chorar: a dor do ralado e a dor antecipada do Merthiolate, que estava destinado a arder em você em virtude do ralado. Nunca vi graça nenhuma no ardor do Merthiolate, mas hoje penso que … Continue lendo A imperatriz e o Merthiolate
Rastro
Uma das coisas que mais me atrai na escrita é um certo estado de espírito que se cria, uma disposição que passa pelas coisas que chamamos de contemplação e calma, ainda que não me pareça ser exatamente isso. A linguagem, a relação com a linguagem tem um papel importante, de que já falei mais vezes … Continue lendo Rastro
Dá-me a tua mão #2
[Esse texto inscreve-se como comentário a "Dá-me a tua mão", publicado neste blog em 2012] Que a escrita seja, como dizem, solitária, pode até ser verdade - mas é ainda mais verdade que ela conjura sempre alguma companhia. Pode ser uma multidão, ou não. Pode ser um ou outro, ter ou não ter um rosto. … Continue lendo Dá-me a tua mão #2
A parábola do governante
Houve um governante, que governou muitas vezes, muitos lugares e por muitos tempos. Talvez eu devesse dizer que há um governante, e não que houve, dada a atualidade de seu jugo; mas o poder repressivo e dominador do tempo presente me intimida, de forma que recorro ao passado. Talvez eu devesse dizer também que ele, … Continue lendo A parábola do governante
Adeus a Nastasja
Valência, 10 de novembro de 1972 Nastasja, quando você receber essa carta já estarei morto, espero que não se incomode. Há muitos anos não nos vemos, muitos anos mesmo – anos demais. Tento agora imaginar como seguiu sua história sem mim, e tudo que me ocorre é a ideia de que você encontrou outros corpos, … Continue lendo Adeus a Nastasja
O olhar do elefante branco
[Esse texto é sequência a "O último elefante branco"] Desenrolou-se já tempo sem conta desde a morte do último elefante branco, desfez-se o fio que o ligava a nós, perdemo-nos dele. Algo em mim, a despeito de tudo, mantém-no vivo, vivo cá dentro, e o que do último elefante branco insiste, eterno, é o olhar. … Continue lendo O olhar do elefante branco
Coragem, passagem [Tríptico]
BORI M'Zifi, senta. M'Zifi é trabalho de Exu, tu sabe disso, tu? Tem trabalho pra tu, senta reto, olha forte, estufa o peito, seje homem, tu. [...] M'Zifi, é tempo de muda, e a morte desembucha a foice o bonito do esquisito. Usa o medo, M'Zifi, usa o medo e lava da cara o verniz … Continue lendo Coragem, passagem [Tríptico]
A musa e o monstro
Eventualmente pareceu-me evidente que, quisesse manter em bons termos a vida com a arte que me cava os ossos, teria de haver-me em confrontação, por bem ou por mal, com a necessidade de inscrever em meus dias o ócio. Ócio, veja, que me doi, posto que me expõe a esse aperto que é, de fora … Continue lendo A musa e o monstro