[Notas para o obituário de Boris Smirnakoff, que seria publicado na coluna “Personalidades” do jornal “O Valenciano”, de 12 de dezembro de 1955. O obituário foi redigido por João Mendes e entregue aos cuidados do editor da seção de Personalidades de Valência (também encarregado das colunas de Esportes, Cotidiano, Notícias Internacionais e direção geral) Pedro Mendes. Não foi encontrado nenhum exemplar desta edição de “O Valenciano” para conferência da publicação. Em verdade, o jornal “O Valenciano” faliu em 1957 e não teve sua circulação retomada até esta data. A carta estava anexa às notas e foi jogada no lixo do escritório de Pedro, por ele mesmo].
Caríssimo Pedro,
desde a morte de nosso pai e sua entrada na direção do jornal você tem me mantido na seção de personalidades, escrevendo sobre os pequenos pudores desta cidade esquecida por Deus. Agora, quinze dias após recusar minha proposta de inauguração de uma coluna cultural em honra de nosso pai, passa-me como tarefa a redação do obituário deste homem maldito!
Sabemos, por acaso, se ele morreu de verdade? Ana o disse, mas como sabemos a verdade do que ela diz? Ela não esteve, afinal de contas, mentindo a você pelos últimos meses? Não percebe que ela o está protegendo? Ele saiu da cidade e está alhures, e jamais o encontraremos, e todos nós devemos ser responsabilizados por nossa passividade e cumplicidade nos gestos destrutivos do maldito russo!
… até quando vai fingir que nada aconteceu?
Eu desisti de jogar este jogo com você. Seguem as notas que consegui coletar – última tentativa de atuar com dignidade neste jornal. Considere este trabalho uma carta de demissão; vou-me com Maria e meus dois. Espero escrever-te um dia e receber resposta de alguém que retomou os sentidos.
Apesar de tudo, ainda te amo, irmão. Só quero que melhore, e se reencontre e, esquecendo de vez esta idéia de honrar nosso pai e o nome que carrega, possa enfim carregá-lo com alguma honra, para onde quer que seja. Da forma como tem agido, definitivamente não o honra.
Mandarei notícias quando souber com certeza que não fará nada tentando me trazer de volta. Abandono Valência de vez. Lembranças a Ana, e melhoras – a ela e a você.
Seu,
João
1. O levantamento documental acerca de Smirnakoff se deu de forma rápida e sem sobressaltos – sua estada na cidade foi breve e, ao fim e ao cabo, não há nenhum documento oficial dele ligando-o à cidade ou ao passado que ele declarava, aqui e ali. A grande verdade é que ninguém em Valência – e eu não sou exceção – sabe nada a respeito do russo, que pode bem nem ter este nome; de fato o obituário só é tratado com algum respeito porque ele se tornou notícia de ponta em toda a região ultimamente, com sua vida “polêmica”, e pelo desconhecido de seu passado há possibilidade de haver algum interesse que ainda não apreciamos nas circunstâncias de sua estada aqui. (Eu, por mim, não faria nada disso, e sempre detestei a figura). As informações que angariei decorre basicamente de observações e impressões da população da cidade, que fui cruzando e cheguei, com alguma violência, aos dados das notas, que espero tornar em texto e vender o mais breve possível.
2. Boris chega a Valência em 1953; inicia sua participação na feira de artesanato na semana seguinte; em um mês vira atração turística. Passa o próximo ano trabalhando para personalidades de Salvador e redondezas, sob encomenda. Espalham-se rumores de que ele se engaja sexualmente com a maioria de suas retratadas. Adota um estilo boêmio e lânguido e destrata todas as pessoas da cidade. O trabalho e a vida de Boris passam a ser marcados pela bebida e drogas, e há notícias de que ele chega a passar dias sem conseguir se lembrar do português, falando apenas russo com aqueles que o visitam. Vira estrela das prostitutas e dos pequenos traficantes da região, que vêem nele financiamento de boas festas e altos lucros com as orgias que promove em sua própria homenagem em sua casa a beira-mar. Até a noite de novembro de 1955 – cujo dia exato passa a ser impreciso, tamanhas as polêmicas e burburinhos que se seguiram à sua morte – quando todos os membros da festinha que estava em andamento foram enxotados violentamente por ele, evento que dá início à marcha (desconhecida) de fatos que culminará em sua morte nesta mesma noite.
3. Falta na região um especialista em retratos que possa explicar de onde deriva todo o fascínio que as obras de Smirnakoff despertam, e que fizeram seu trabalho prosperar a despeito do desrespeito que tinha por tudo e todos à sua volta. A verdade é que seus retratos parecem em tudo versões perfeitas das pessoas retratadas – sempre que penso a respeito imagino que isso é loucura e que com certeza perceberia o truque vendo algum quadro seu novamente; sempre que tenho oportunidade de observar um quadro seu sou tomado pela mesma sensação e fico quase extasiado com as obras.
4. De volta à noite derradeira. Sabe-se que Smirnakoff se descontrola enquanto retrata, completamente ébrio, uma de suas prostitutas. Segundo notícias, os retratos, ainda de alto valor artístico, há muito haviam deixado de lado o retratismo em si, passando a representar mistos indecifráveis de memórias de Smirnakoff, elementos da beleza pura que o fez famoso e elementos fantásticos, como cores vibrantes e artificiais que ele imiscuía com inegável talento nas obras.
5. O quadro inspirado na prostitua foi encontrado incompleto. Isso em si não impressiona, já que ele teria perdido de vez a sanidade justamente a partir desta pintura; o que impressiona é o fato de que o rosto retratado não parece nem de longe com a prostituta, e isso nunca havia acontecido nos retratos de Smirnakoff. Se, por um lado, os retratos não aspiravam mais à fidedignidade, sempre foi possível reconhecer quem era retratada e afirmar que se tratava de um retrato “aperfeiçoado” de tal ou qual pessoa. No caso da pintura encontrada na casa, sabe-se que estava sendo retratada Janaína, e a pintura apresenta uma moça que jamais foi vista em Valência, aparentando seus quinze anos, com traços europeus – talvez a tal Nastasja mencionada na carta da escrivaninha?
6. … esse obituário é impossível. Não sabemos sequer o nome do morto, nem se o morto está morto. E se alguém em Valência merece respeito, este alguém não é o russo. Desista, irmão.