Lembro que, quando era moleque, Merthiolate ardia pra burro. Se você caía e ralava o joelho tinha logo dois motivos pra chorar: a dor do ralado e a dor antecipada do Merthiolate, que estava destinado a arder em você em virtude do ralado.
Nunca vi graça nenhuma no ardor do Merthiolate, mas hoje penso que ele tem uma função interessante, uma função que tem a ver com a relação entre dor e cuidado. Isso porque a mãe, ou quem quer que seja o cuidador, não tinha (nem deveria ter) como evitar que você ralasse o joelho, nem obviamente podia te preparar pra esse momento, mas tinha como estar com você e cuidar do momento em que o remédio ardesse.
Aí dava raiva, claro. Raiva do ardor do remédio, de quem inventou aquela birosca, no desespero do ardor e no frescor da infância dava até raiva da mãe que aplicava – mas era isso aí, era o que era, e a gente tinha como se preparar, se cuidar, cuidar disso. A dor do Merthiolate doía, igual ou pior que a dor de ralar o joelho no asfalto, mas a gente tinha como “agasalhar” essa dor, descobrindo ou inventando um jeito de entender a dor e cuidar do que ela representa pra gente.
Falo disso tudo porque entendo que em muitas circunstâncias as artes literárias desempenham um tanto essa “função Merthiolate” – o ardor, o ardor como cuidado, o cuidado com o ardor, o trabalho de “agasalhar” o ardor em sentido. Nem sempre isso está em jogo, claro: há um tantão de livros que se esgota em outras funções, e está tudo bastante bem assim. Mas tem aquela literatura, poesia e/ou não-ficção que envolve essa “função Merthiolate”. E aí, quando isso está em jogo, isso opera das formas mais variadas – porque, diferente do remédio industrializado, previsível em sua fórmula e composição e variando em ardência apenas em função da suscetibilidade da criança, da extensão do ralado, da relação criança-cuidador etc, a literatura que arde arde de forma artesanal: cada uma arde de um jeito.
E é esse ponto que mais me cativou na arte da Maria Fernanda Maglio – as peculiaridades da função Merthiolate na arte dela e em seu admirável “Enfim, imperatriz”.
O livro me caiu nas mãos meio por acaso. Estive na Patuscada, sede da editora Patuá, por conta do livro que lancei por lá recentemente, e o Eduardo Lacerda, editor generosíssimo, me deu um exemplar de “Enfim, imperatriz” – assim, no meio da conversa, o assunto passou por perto do livro e ele puxou um exemplar pra me dar.
Li.
Há muita coisa interessante a pinçar do livro – tanto no sentido crítico mais negativo, como vi nas críticas que li a respeito dele, como no sentido positivo, que imagino que estivesse nos olhos do júri do Jabuti que o premiou como melhor livro de contos de 2018; mas não quero escrever uma resenha do livro, quero só comentar rapidamente esse ponto da relação entre a literatura, a dor e o cuidado.
Porque o livro é doído, jesus, o livro é doído. É tudo gente sofrida, e o povo sofre, e os finais são tristes, e dá tudo errado: o livro é doído. Eu tendo a solidarizar, até porque eu sempre fui mais chegado em literatura com um quê de sofrência – um quê de intelectualismo e um quê de sofrência, na verdade: curto Kafka, curto Beckett, curto Dostoievski, tudo gente sofrida. E mesmo nas coisas que eu escrevo sinto que tem um tanto de sofrência, são textos carregados, e é meio comum que o povo nos meus textos sofra um bocado.
Mas tem a função Merthiolate, e o que me pegou no livro da Maria Fernanda Maglio é a impressão de que não teve ali função Merthiolate. Não tem a ver com “moral da história”: tem a ver com a função de narratividade que as narrativas tem. Dá pra entender? As histórias são narradas com bastante talento, a Maria Fernanda escreve muitíssimo bem – as metáforas, alegorias, o imaginário do texto é riquíssimo, por exemplo. Mas é como se fosse uma trama finamente tecida, com temas e imagens belíssimas em seu bojo, mas que não vertesse ou sequer apontasse pra um tapete, uma bolsa, uma malha, uma o que quer que seja – é um bocado de coisas bonitas, caleidoscopicamente girando, e a gente vendo. E aí me falta algo.
Que não precisa ser utilitário. Não precisa ser moral. Não precisa ser edificante, nem trazer esperança. Imagina um livro que traz um clima “amigo, a vida é uma merda”: é um efeito, é um tema, faz a tal função Merthiolate. A maioria dos livros decentes, pelo que eu vejo, trazem uma função meio complexa, como é a do próprio Merthiolate: às vezes a gente se machuca, e assusta e doi pra porra, mas olha só, respira fundo, agora vai doer de novo mas a gente tá tratando do ralado, segura aí, em breve melhora, aí você pode brincar e eventualmente ralar de novo… a função Merthiolate não é linear, não é uma moral de fábula, mas ela funciona, ela organiza, ela “agasalha” as coisas que põe em jogo.
No livro da Maria Fernanda eu senti falta disso: de a narrativa estar mais “agasalhada”, de forma que aqueles personagens interessantes, aquela prosa linda, aquela sofrência toda, aquilo tudo fizesse esse trabalho de cuidado que eu sinto que a literatura faz.
Mas há uma virtude: além de o livro ser belíssimo, tanto em termos de conteúdo quanto em termos materiais, ele tem a grande virtude de não ser óbvio, de não vir já pronto e embrulhado pra te tornar mais e melhor. Acho urgente que a literatura não venha digerida, e nesse quesito “Enfim, imperatriz” tá de parabéns.