A musa e o monstro

Eventualmente pareceu-me evidente que, quisesse manter em bons termos a vida com a arte que me cava os ossos, teria de haver-me em confrontação, por bem ou por mal, com a necessidade de inscrever em meus dias o ócio.
Ócio, veja, que me doi, posto que me expõe a esse aperto que é, de fora pra dentro, reflexo do ímpeto que de dentro pra fora se me impõe e, quando contrafeito, pacientemente ainda que sem demora me corroi.
Seria tomado, no descuido e na pressa, como vítima de um individual destempero pessoal, passional, bio-quimico, reativo, e as engrenagens terapeuticamente cabiveis, isso posto, diligente e cuidadosamente processariam esse meu corpo, dissipariam essas minhas energias, a mim estranhas, e me deixariam bem, bem formado, bem cuidado, apaziguado, assalsichado.
Bom seria,  não fosse o mal que ao bem feito se assoma como excesso, destempero, pelas bordas, mas lá estando, olhos vistos, flama ardente e a bocarra a postos. Monstro ausente, evidente, é a moagem do ímpeto, esse que cava os ossos, que aperta o peito. Não o ímpeto: a supressão dele. Destempero maior, esse que moi o destempero que em mim, ainda que estranho, é fundamental.
Pois o meu anverso, esse meu estranho que me aperta de dentro pra fora por necessidade de ar, é a alma que através da minha finitude e insignificância tira materia pra dizer algo do infinito. O meu anverso é o que em mim não me pertence, que me entope e me explode e me esbanja. Porque o meu anverso e o verso que dele emana, quando eu não me imponho, é o infinito que brilha de mim pro fundo do silêncio do mundo. E quando o medo de explodir ou o descaso de manter o trinco da ordem e da rotina mordem de volta pra dentro o que a mim não pertence, apequeno-me e, fosse descuido e pressa reinarem, lançar-me-ia aos supressores cabiveis – desexplosao dos infinitos que em mim se fazem, em nome do eu e do mesquinho direito de não explodir.
Mas é ridículo que seja assim, assim como é: debaixo da pele estamos o tempo todo em carne viva. E é achando bonito que se faz da pele um tupperware bonito e enfeitado, guardando dentro uma carne indistinta que quando pulsa estraga o poliuretano das florzinhas de plástico. E é achando por bem que resolvemos nos ajudar uns aos outros a manter tampas e adesivos decorativos em bom estado, e apinhamo-nos sobre os mais claramente pulsantes e sobre aqueles de pele mais fajuta para conter, fossem tupperware da china ou coisa que o valha. É achando por bem que se tampa o pulsar da carne nossa, e se insiste em que o certo é que se não viva tão pulsadamente assim – desarranja o arranjo, desassossega os próximos,  atrapalha o trânsito.
Daí eu ver, como que numa convicção com ares de birra, daí eu ver algum encanto no meu pulsar, e alguma graça no desajeitado do meu pulsar. Porque o verso, o bom verso é feito a foice – é assim que ele corta, de baixo pra cima, de dentro pra fora, em busca de espatifar minhas carnes nas florzinhas decorativas e nas tampas de plástico dos outros. A arte que é em mim só é de si pra si quando me explode a tampa – os ossos do ócio perfazem a arte como ofício. E é aí, pavor esbugalhando os olhos, que ela se me afigura: a musa.
Quando mais novo imaginava a boa arte nascida da calma de um velho careca simpático, do vagar tranquilo de suas palavras tartarugando pensamentos e costurando belezas com os jogos de carapaça, os desenhos e padrões que ele tartarugosamente tecia. Imaginava a inspiração como uma segurança sabichona, desfilando verdades bem cortadas diante dos venerandos olhos de quem me pagasse as contas pelo direito de ter-me tecendo carapaças pelos próximos trinta dias. E seria assim, simples e pacato como um fim de historia, tranquilo para sempre, inspirado porque assim é. De dentro desse conto de fadas embarrrigou-se no entanto um monstrinho, comeu seu caminho sonho afora e do espalhafato sobrou a carne triturada e o bruto fato: a musa é um bicho feio, e é dele a arte minha. A musa é um bicho feio, exigente e mal hóspede, cavoca exigências, se esparrama no sofá, desarranja os arranjos da rotina, se amotina em verso e prosa e, toda prosa, fica lá.
Não falo por maldade nem desengano: criei mesmo gosto pela coisa. E foi bom, desfiz-me de querer esperá-la como visita bem comportada e disponível e descobri nessa bichinha arisca, inquieta e aflita uma companhia divertida, agradável,  hostil hóspede e hospedeira minha.
Imagino, então, que se me oferecem uma pílula dourada, calmante, estimulante, relaxante, apaziguante, sonífera, anestesica, sabor camomila, agradeço a gentileza mas com presteza me desfaço.  Não é por mal mas, se mal e mal sobrevivo ao convívio, o monstro eventualmente se me faz ver como aquilo que em mim é mais fundamental, a arte mesmo da composição das engrenagens, o cristal que anima a máquina.
Ademais, e sem deferência a monstros, musas ou príncipes, diria simplesmente que sobreviver à arte que me atravessa, hoje, afigura-se-me fundamental.

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