O olhar do elefante branco

[Esse texto é sequência a “O último elefante branco”]

Desenrolou-se já tempo sem conta desde a morte do último elefante branco, desfez-se o fio que o ligava a nós, perdemo-nos dele. Algo em mim, a despeito de tudo, mantém-no vivo, vivo cá dentro, e o que do último elefante branco insiste, eterno, é o olhar.

O olhar que se oferece a partir de seu olho direito, em verdade; vejo-o me vendo, desde dentro, e ele me vê com seu olho direito.

Não chega a me ver, propriamente; ele me enxerga, quanto a isso não há dúvida, e de mim ele enxerga como que a partir do umbigo da alma – e ainda assim seu olhar não me perscruta, não interroga, se ele me devassa e me desvenda não o faz por deliberação, mas sim por fatalidade. O último elefante branco insiste na fatalidade de si, para além de si, através de sua fatalidade e no fulcro da fatalidade de todos nós.

O olhar d’ele não traz, em si, nada de complexo – não porta distinções notáveis entre a íris e a pupila,  não parece mesmo passível de grande plasticidade em termos de contração e expansão do aparato muscular que acolhe o olho enquanto órgão – o olhar do último elefante branco, ainda nisso, é atravessado pela fatalidade, fatalidade de estar inscrito num olho plasticamentr pobre.

De maneira geral dir-se-ia que um olhar, preso no órgão que o acolhe, miraria nada mais que o passado, passado mínimo, mas ainda assim, e sempre, passado. É como se o olhar corresse falidamente em busca de enxergar o que vê se esvaindo diante de si, sempre passado: o olhar e sua melancolia incurável, o olhar e sua solidão irremediável.

E no entanto… no entanto, o olhar do elefante parece desprender-se disso, olhar que em sacrifício transcende a imediatez de sua fatalidade e lança-se, ainda que passivo, em direção à fatalidade vindoura. Miro assim o olhar do último elefante branco e vejo, enfim, que através de mim ele vê a si mesmo atravessado pela morte – o último elefante branco sabe, ali, a sua morte, morre desde ali até a efetivação disso que, ao largo do caminho, ele já vê em si. Olhar estranho, olhar que complica o passado que enxerga com um futuro que sabe, enxerga o que já viu e que acontecerá – e quando acontecer, será como o que tem de ser, o elefante vendo vir o que já viu e sabe: o último elefante branco não morreu, ele acolheu sua morte já sabida quando ela chegou. Diante d’ele a morte, sempre tão sabida e certa, fez-se visitante, encontrou um cúmplice, e deu-se que a morte ali foi tragédia para quem sobreviveu – como, talvez, sempre seja.

Desde onde estamos vê-se estender um imensurável, inexorável tempo, e ao largo desse tempo o elefante branco não se vê, não se vê a não ser desde dentro. Ali, no entanto, fulgura, como o centro de tudo, o olhar sereno, apaziguado e inclemente do último elefante branco, morto injustamente, por quem não conhece,  não entende e não respeita a morte, tendo morto por luxúria e ignorância ele a quem a morte recebeu como a um superior.

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