Coragem, passagem [Tríptico]

BORI

M’Zifi, senta. M’Zifi é trabalho de Exu, tu sabe disso, tu? Tem trabalho pra tu, senta reto, olha forte, estufa o peito, seje homem, tu. […] M’Zifi, é tempo de muda, e a morte desembucha a foice o bonito do esquisito. Usa o medo, M’Zifi, usa o medo e lava da cara o verniz do dia a dia, usa o medo e deixa atrás de si o razoável, o confortável. Vó mata tu, M’Zifi, vó mata tu por dentro de deixar-se acomodar em bonitezas de velório e orações de trabalho feito à branca; lava a vó também, solta o selvagem da vó: vó era o urro do monstro, tu sabe, tu, M’Zifi, tu sabe. Ewá, Oxumaré, Exú – o santo, a morte, o tempo e tu; tu sabe. O bastão, Fi, o bastão de Nanã Buruku, comanda a vida e a morte e, lavando a cara, vestindo a coragem, montando a carcaça, tirando a pirraça e querendo desgraça o bastão da Nanã comanda também tu; tu sabe. […] A véia morre já, M’Zifi, a véia morre que é tempo de muda, M’Zifi fica e protege o tempo, conduz o tempo, carrega o tempo – é tempo de muda, carrega tu o tempo à foice, Fi, e muda.

 

KAFKA (trecho de “O processo”)
Nos textos introdutórios à lei consta o seguinte: diante da porta está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não”. Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta, e o porteiro se póe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz: “Se o atrai tanto, tente entrar apesar de minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro”. O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo e a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido, e cansa o porteiro com os seus pedidos. Muitas vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito de sua terra e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que costumam fazer os grandes senhores, e no final repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado para a viagem com muitas coisas, lança mão de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita tudo, mas sempre dizendo: “Eu só aceito para você não achar que deixou de fazer alguma coisa”. Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa em voz alta o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil, e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente, sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está escurecendo em volta ou se apenas os olhos o enganam. Contudo, agora reconhece no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrigecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem. “O que é que você ainda quer saber?”, pergunta o porteiro. “Você é insaciável”. “Todos aspiram à lei”, diz o homem”. “Como se explica que, em tanto anos, ninguém além de mim pediu para entrar?”. O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio, ele berra: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”.

CHUANG TZU

Se no sonho eu era uma borboleta, e agora ao despertar vejo-me uma vez mais Chuang Tzu, como saber se eu não sou em verdade a borboleta, sonhando ser Chuang Tzu? Seria eu Chuang Tzu a sonhar ser borboleta ou, ao contrário, serei eu uma borboleta a sonhar ser Chuang Tzu? Em verdade, em verdade vejo-me, Chuang Tzu, a ser borboleta, sonhada a fazer de mim um Chuang Tzu capaz de voar, capaz de sobrepor abismos e capaz de produzir furacões. E assim também em verdade vejo-me borboleta sonhando ser Chuang Tzu, sonhando pensares, sonhando pesares, sonhando seres não sidos a crescer-se à volta de mim, fantasiados inertes e animados, fantasiados grandiosos e serenos, fantasiados reais e fantasiados sonhados. […] Se no sonho eu era uma borboleta, e ao despertar vejo-me Chuang Tzu, serei então uma borboleta que pensa filosofias, e serei um chinês que voa.

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