Adeus a Nastasja

Valência, 10 de novembro de 1972

Nastasja,

 quando você receber essa carta já estarei morto, espero que não se incomode.

Há muitos anos não nos vemos, muitos anos mesmo – anos demais. Tento agora imaginar como seguiu sua história sem mim, e tudo que me ocorre é a ideia de que você encontrou outros corpos, outros homens, outros segredos, viveu com outros o que por tão pouco tempo vivemos juntos. Tento imaginar como você está e tudo que me vem à mente é que eu não estou com você – você está consigo, linda como sempre, boa como sempre, mas despida de mim.

E então, nesse momento talvez você se veja lendo essas minhas palavras, sabendo que eu já morri, e se pergunta então “por que estou lendo essa carta?”. Se isso lhe ocorre, compreendo; compreendo mesmo se pensa em não lê-la até o fim. Peço, no entanto, que leia, prometo ser tão breve quanto possível.

Escrevo-te, Nastasja, porque você, ainda que despida de mim, é a última pessoa nesse mundo que me guarda ainda consigo. E veja que é a última definitivamente, já que eu mesmo não conto mais entre estes, nem nisso posso hoje acompanhar-te. Não só porque morri – o pior é que mesmo quando ainda estava vivo, quando escrevia estas palavras , lutando por mim e a despeito de mim, mesmo nesse momento não vivo em mim, morri em algum lugar dentro dessa carcaça fútil e sumi.

Você há de lembrar, Nastasja, e imagino que ranja os dentes ao lembrar como fugi da aldeia em busca de aventura, como fui embora e deixei a você e a todos para trás. Imaginava, então, que mergulharia em épicas aventuras, sentiria os mais intensos sabores, aromas, os mais ardentes desejos, singraria os mares, perscrutaria as selvas; fugi porque precisava disso, precisava estar muito, porque precisava de muita vida, muitas vidas em mim para suportar os anos que contava à minha frente.

A má notícia, Nastasja, a má notícia que logo chegou às profundezas de meu egoísmo é que havia entendido tudo errado. Fugi de nossa aldeia em busca de alimento para minha alma, e em busca do alimento perdi a alma que alimentaria. Singrei os mares, sim; perscrutei selvas, sim; estive com belas donzelas, duelei com belos senhores; amei, odiei, lutei, gozei e sofri; e no entanto, ao largo dessas tão saborosas aventuras sentia-me alheado do paladar em que as deveria saborear.

Fui tudo que ansiava, Nastasja, e no entanto, ao mesmo tempo, não fui ninguém. Não fui eu quem viveu tudo que eu queria viver, enquanto o vivia.

Agora estou em uma pacata cabana, num bairro pacato de uma pacata cidade no nordeste brasileiro; aguardo a chegada dos homens que me tirarão a vida. A história, que interessaria interesseiros, certamente não te interessará, não a ti que não reconheceria nas desventuras que conduzem a este funesto momento nada que seja meu, nada que rescenda ao Boris que conheceste. Em resumo quem vêm me cobrir com o derradeiro manto são representantes dum pai inconformado com o que fiz com a filha dele (como se a tivesse forçado a algo). Conheci-os, pai e filho, quando participei de um grupo que procurava construir um mundo melhor, e tentando fazê-lo construía o pior que esse nosso mundo já teve o desgosto de assistir. Acreditava no que fazíamos, Nastasja, não o fiz por mal: acreditava que era necessário livrar o mundo dos maus homens para que os bons pudessem fazer do mundo um lugar melhor; tarde demais descobri que convicções como as nossas habitavam apenas os piores dentre nós. Ironicamente, então, esses homens desenganados vêm cumprir uma etapa de sua já desencaminhada missão – matarão em breve um dos piores homens do mundo: eu.

Mas sou um homem teimoso, Nastasja. Sou um homem teimoso e por isso, quando morrer, quero não ser mais um dos piores homens do mundo, e é por isso que te escrevo. Escrevo porque estando em sua companhia, mesmo que em pensamento, sinto-me  estranho a tudo isso que de ruim fiz nesses anos todos que nos separam, sinto-me menos ligado a isso tudo que vivi e não fui, e sinto-me mais ligado a você, e a tudo que eu sou e por covardia e arrogância não vivi.

Perdoa então, Nastasja, mas em meus últimos pensamentos, quando entregar minha alma à eternidade, pensarei em você como minha única, minha eterna companheira, e tentarei, ao menos em pensamento, voltar a você e à nossa aldeia.

Peço então, Nastasja, que me faça um último favor: peço que vá ao bar, sirva-se de vodka e, com toda a bondade que não mereço, peço que brinde a nós, ao nosso antigo, eterno amor. Estou, cá, servido de meu trago; ergo-o agora em direção à janela, em direção à Rússia, em direção ao passado. Um brinde, Nastasja. Um brinde.

B.S.

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