Minha cara, mesmo.
Chego na Paulista imaginando encontrar a história sendo escrita, decidido a participar e convencido de que minha decisão seria, de alguma forma, também a decisão do mundo. “Claro, meu querido, se você saiu de casa e veio pra cá, parece mesmo que está na hora de as coisas acontecerem”.
Eu chegaria animado, e bem na hora, mergulharia em meio à turba no momento exato em que a massa tomaria forma, iniciaria a dança que em todo caldo indica a iminência da fervura. Seria a vida nova, o mundo novo – eu teria chegado, enfim, na hora.
Aí eu chego e encontro o dia a dia, o ir e vir, business as usual. O mundo, em algum lugar, ri de mim e de minhas fantasias messiânicas.
Eis que, de repente, não mais que de repente, encontro o tal mundo, que se denuncia pela risada: um morador de rua, há muito tempo habitante da Paulista – de forma que talvez fosse mais justo dizer que é habitante da Paulista, especificamente, e não da rua, genericamente – olha claramente pra mim, e ri, claramente, apesar de seus dentes pretos e seu rosto todo sujo.
Conheço esse moço – na época em que trabalhava por aqui encontrava ele todo dia, no caminho ao ponto de ônibus, surfando sobre uma lata de lixo, fones de ouvido reproduzindo surf music que ele mesmo compunha no momento (deduzo isso porque o fone não se conectava a nenhum dispositivo, o conector balançando ao sabor das manobras do morador da Paulista). Ele sempre me parecia compenetrado, e parecia levar o esporte a sério, posto que estava sempre empenhado naquele horário; imaginei que eventualmente poderia participar em algum campeonato de air surf, se quisesse – claro que ele não quereria, era só meu jeito aprisionado de reverenciar a disposição do esportista. Um dia, inclusive, era eu quem ria ao contemplá-lo – não por acha-lo ridículo, como parecia o caso dele em relação a mim agora, mas justamente pelo contrário, por admirá-lo, quando dei-me conta que simbolicamente ele não surfava o ar, mas a turba de ternos e cidadanias; ele, que eu insistia em entender como morador de rua, carente de serviços e assistência, surfava talentosamente em meio à massa e acima da massa de anônimos cidadãos de bem.
Enfim, o morador da Paulista, conhecido já de algum tempo, agora ria de mim, o que me parecia indicativo óbvio de que ele tinha “visto” tudo – tinha visto meus devaneios grandiloquentes, tinha percebido minha iniciativa e minha expectativa, tinha acompanhado cada passo de minha caminhada rumo ao fiasco, tinha sorvido toda a comicidade de minha figura estancada ali, idiotizada diante do nada que me acolheu quando eu esperava o grande dia em toda sua majestade.
Dou uma pesquisada na internet e fico sabendo que a manifestação tinha sido deslocada para a praça Roosevelt, lááá em baixo, provavelmente para não atrapalhar o tráfego – sobrei eu ali, na contramão, sonhos na mão, molenga balançando levemente, eles murchos de si e de mim. Sobrei ali.
Subitamente senti algo em mim tentar uma pirueta salvacionista de última hora – algum mergulhador, talvez, que me puxasse pelas mãos, eu surfista perdido nas profundezas do caldo mais humilhante da paróquia, digo, da metrópole. Vi-me então aproximado do meu velho conhecido morador da Paulista, encontro de desencontro e alguma solidariedade – ele ri de mim, eu também já ri dele, e de alguma forma perdemo-nos ambos, envolvidos em nós mesmos e em nossos grandiloquentes surfes sobre-os-normais.
Desconectei o fone de ouvido e me aproximei dele, que ainda ria a olhar pra mim. Quanto mais me aproximava, mais parecia que ele se distanciava, e a alguns passos já sentia que enquanto ria de mim ele não me via em absoluto – passou pela minha cabeça que ele talvez risse de algum velho conhecido, quiçá do Elvis Presley ou da Hebe Camargo, e me vi hesitante e incerto; surfista escaldado profissional, pode-se dizer, sempre pronto a brochar quando a onda vem.
Reduzi o passo, passei em orçamento apressado estratégias possíveis diante do impasse: e se eu refizesse a rota e seguisse meu rumo? Poderia ir à Livraria Cultura, quem sabe. Ou poderia fazer uma volta mais ousada e tomar o rumo da Consolação, descer em direção à Roosevelt, encontrar meus colegas manifestantes – mas a sensação de atraso e ridículo já garantia uma participação tímida e um retorno à casa com o rabo bem enfiado entre as pernas, humilhado de mim mesmo e de minha mesmice. Poderia, quem sabe, encontrar coragem em algum lugar e sentar-me ao lado dele, quem sabe convidá-lo a pegar umas ondas comigo – dessa possibilidade até eu ri, mesmo eu que costumo dar rédeas à imaginação e ver em mim milagreiros e profetas não consegui me enxergar nessa.
Quem me salva do impasse, insolitamente, é o morador da Paulista. Vai organizando a risada em um fim de risada, engole um tanto da saliva que se aproveita da boca larga para fazer-se sobrar, dá uma pigarreada; aí eu vejo ele como que ajustando o foco, deixando de ver o que quer que seja que ele estivesse vendo e passando a ver alguma outra coisa, não exatamente eu, que seria só mais uma gota no oceano em que ele surfa, mas alguma outra coisa, entre eu e eu mesmo, como se ele enxergasse mesmo coisas que existem em mim e que fazem de mim quem eu sou sem estar disponíveis assim, no balcão dos encontros.
“O cara era foda, né?”
“Que cara?”, penso eu; que cara?
“Que cara?”
“Porra, ele fazia de tudo, meu bróder, o cara era a moléstia! Aí veio essa porra toda e tamo aí na sofrência” – não é bem uma resposta, mas foi assim que ele seguiu o papo.
Senti algo estranho – não é bem que ele estivesse conversando comigo: estava mais próximo de mim do que o normal, por um lado, mas por outro não estava falando comigo em absoluto. Não teria aquela conversa com nenhum outro, dada a profundidade do contato que tinha comigo, mas teria tido aquele mesma conversa com qualquer um, dado que não era em absoluto comigo que ele conversava. Aí eu entendi: era um surfista! Ele estava surfando. Não estava tirando uma onda comigo, como dizem, mas estava pegando uma onda na ocasião de ter-me visto ali; eu poderia pegar uma onda com ele, se conseguisse surfar, ou poderia ficar ali, meio rocha meio areia, esvair dele o surfe e esvair de mim o que quer que seja que eu tivesse sobrando naquele tipo-encontro que poderia ser algo mais que um encontro, mas que não seria um encontro jamais.
Enfim: procurei em mim algo como uma prancha e arrisquei umas braçadas.
“Cara, não sei… a gente vive o que resta, e vai tentando achar um caminho por dentro, um jeito de subir, né?”
Não faço ideia de onde isso tinha vindo, e não sabia o que significava, mas saiu da minha boca.
“Ninguém sobe, bróder, os caras acham que vão pra algum lugar mas é tudo baba de baleia. Tudo baba de baleia, falando merda e espumando o rolê, isso é que é”.
Senti uma animação em mim, que eu tentava conter como podia para evitar perder a onda, a concentração. Estava como que filosofando com um Sócrates do asfalto!
“Mas se os baba de baleia decidem tudo por nós, como fica?”
“Ninguém decide porra nenhuma por mim, meu querido. Baba de baleia só te suja de branquelo metido a besta – que se tu desliza no rolê a baba espuma e tu é só o suingue, só o estilo, só a viagem”.
Bambeei; senti que ia cair.
“Mas pra que? Como fazer diferença?”
“Diferença é fuzuê, malandro. Tu aprende a fazer conta na escola e fica querendo socar o mundo dentro da lição de casa, mas diferença é o excesso do resto. Diferença é o excesso do resto, esse que é o rolê”.
Era o Sócrates… estava cada vez mais certo disso.
“Quer ver a diferença, meu querido? Cola no café gringaiado ali, o café da moça [acho que era o Starbucks], manda uns café de vaca, manda uns bolo de fruta gringa que os maluco largam ali, aí tu mija o café ali do ladinho do prédio; aí tu caga os bolinho ali no parque, curtindo os passarinhos e o caralho. Aí tu surfa, meu querido. Esse é o rolê”.
Eu não sabia mais o que dizer. Estava pasmo.
O morador da Paulista, que eu já via como um senhor de idade, alguém de muita vida e cultura, levantou-se, um pouco trabalhosamente. Ele fedia, cheirava a lixo e fezes e urina. Hesitei um pouco na minha impressão de ser Sócrates – provavelmente estivera fantasiando ainda um tanto.
Ele enfim terminou de levantar. Era relativamente baixinho. Olhou-me, com um certo descaso, e perguntou “tu tem cigarro, simpatia?”.
Assustei. Senti que ele já não me via, estava me tratando como um qualquer, mais um sobre quem ele surfaria mais tarde, se estivesse a fim. Fiquei um pouco ofendido, por mais ridículo que possa parecer.
Isso tudo senti em um átimo, ali no fundo dos olhos; no duro, na prática, após uma brevíssima hesitação, comum quando somos interpelados por alguém que julgamos ameaçador, como se discriminássemos se haveria a viabilidade de uma resposta honesta ou se se trataria de uma coação disfarçada, um assalto ainda não deflagrado, depois dessa hesitação já protocolar respondi “não, amigo, não tenho”.
Ele inclinou levemente o rosto para o lado, de uma forma um tanto animalesca; apertou um pouco os olhos, como se me fixasse melhor. Nessa posição, ainda, e num tom de voz baixo porém firme, disse: “então vai se fuder”. Abaixou lentamente, pegou sua sacola e saiu andando.
Fiquei ali. Infinitamente longe da Livraria Cultura e de meus tão familiares livros. Infinitamente longe da praça Roosevelt e meus tão pessoais, tão egoístas atos políticos.
Sentei numa mureta de prédio, ali ao lado, logo em frente ao metrô. Fiquei ali um tempo, assistindo às ondas que batiam nas praias, aqui e ali. Tudo tão distante, tão estranho. Tudo ali, tão distante, parecia parte de uma mesma massa, uma mesma espuma. Baba de baleia, a espuma destrambelhada de uma onda que de alguma forma nos navegava a nós todos, indiferente, uma outra natureza e uma outra cadência.
Fiquei ali um tempo. Eventualmente voltei pra casa, e pro trabalho, e pra tudo o mais. Eventualmente perdi de vista o tudo que eu vi que perdia de vista o tempo todo. Mas por um tempo estive ainda ali, espuma, baba de baleia, contemplando do limite que alcançava o tanto que eu não alcançaria jamais, sempre ali, a me navegar.