Autopsicografia (versão plágio)

Caminhando às pressas em meio a projetos inacabados, em meio a escombros e vielas, caminhando às pressas encontro ele, tanto eu como ele portanto estupefatos a mesma surpresa de sempre.

Ele em geral não tem nome; às vezes acontece de ter – pode se chamar Rodrigo, como certa vez me disseram que eu mesmo poderia ter me chamado; pode se chamar Pedro, pedro pedra de tropeço, pedro ignorante devoto que constrói a despeito de si. Pode ter outros, aleatórios nomes; mas em geral não tem nome algum.

Tem também poucos atributos, porta feições genéricas, traja qualquer coisa que deixa de chamar atenção. Para todos os efeitos, ele poderia ser, provavelmente é só mais um filho anônimo desse meio constantemente renovado das elites imbuídas da peculiar crença em serem representantes de um Homem Universal.

Mas ele não é universal, evidentemente: ele é qualquer, é genérico. Está parado lá, em meio aos tais escombros e projetos; está em pé, ao que parece, mas talvez esteja sentado. Não me parece que esteja deitado, embora pode ser que esteja sonhando.

Não está fazendo nada. Como sempre, não está fazendo nada. É pouco provável que ele faça alguma coisa. Talvez ele fale sozinho, isso é algo relativamente recorrente.

Em que ele estará pensando?

Ele pensa?

Ele vaza, isso sim. Parece, ao menos, que ele vaza. Ele é meio transparente, pelo visto. Transparente, não: ele é translúcido. Não, não: ele é um superfície translúcida com um certo grau reflexivo, isso sim.

Uma superfície translúcida com um certo grau reflexivo.

(Talvez seja melhor chamar de Rodrigo. Ou Pedro).

Ele reverbera mais que porta.

Ele vaza mais que sente.

Ele reflete mais que pensa.

À força de ser-se só, e de estar assim transvasado de luz e reflexo, ele se presta a violências – violências de outrem, claro; violências minhas.

Não que eu vá bater nele, jamais faria. Jamais faria nada. Sequer existo. Violências, essas que impingiria, essas que ele portaria, são aquelas que de mim transvasam através dele – ele sombra, ele luz. Violências que seriam pensamentos, que seriam emoções, tudo aquilo que muito me habita a despeito de mim, tudo aquilo que não tem contorno, que não tem nome.

Ele conforma o verso que em mim não tem medida, a prosa que não chegaria, o drama sem ímpeto. Ele é o metro, meu metro abstrato – a cada doze onças e três polegadas, um texto vira o parágrafo à esquerda, reencontra ele, que ainda não tem nome nem forma, segue em frente até o amanhecer, por doze metros pentagonais.

Mas em geral não amanhece nessas estranhas terras: perdura infinito o lusco-fusco do entardecer, a miopia me come os contornos das coisas, esgueiro-me em meio aos sempre tantos projetos e escombros, guiado pela busca de sabe-se lá o quê, e pela aura que as coisas emanam ao redor de si, a partir de seu sempre misterioso centro.

Quando enfim me ocorre interpela-lo vejo que ele já não está mais lá. Ele poderia ter vivido histórias, poderia ter passado por desventuras memoráveis, e é possível que ele venha a vive-las, em algum lugar, de alguma forma, sempre a despeito de mim.

Curiosamente, mas um tanto preguiçosamente, dou-me conta de qualquer maneira que sequer sei se ele sofre. Ele parece um sujeito meio vazio, sem estofo – será que ele sofre?

Sofro eu?

Se ele sofresse, e se sofresse completamente, poderia até acontecer de ele reportar a mim dores que deveras sente – eu vê-lo-ia então, ele se ofereceria a mim opaco, cheio de entranhas e intimidades, grávido de acontecimentos e fantasias e recordações, ele se verteria sujeito e ator e agente e protagonista.

Se ao menos dores ele deveras sentisse.

Se ao menos ele fingisse.

Mas não, foi uma vez mais apenas um vislumbre, um fantasma fracassado no estúpido propósito de se fazer simplesmente assombração. Faltou-lhe sombra, no entanto; faltou-lhe ação.

Ver-se-ia, quiçá, através dele, aquilo tudo que por força de ser tão pouco ele tanto deixa de ter; aquilo que ele não tem. Mas se essa falta estivesse lá, falta já não seria. E por isso não é, ou assim, ao menos, me parece. Porque eu olho e já não vejo, sequer o reflexo, sequer o translúcido.

Ele esteve aqui?

Você viu?

Ele quem, mesmo?

Bom, tanto faz. Senta aqui. Dá-me tua mão.

Faz frio, não? Sinto um calafrio correr, talvez pela minha, talvez pela sua espinha; que será?

Quem é aquele?

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