Eu que não tenho. Que não teria. Eu, e as ideias que se me ocorrem, e que em geral são muitas.
Eu, que vivo e penso em meio a textos não escritos, quando me proponho a escrever escrevo, em geral, sobre nada.
Eu, que me encanto pela vida dos “cá dentros”, atento sempre à falácia de supor que haja um dentro a se opor a um fora. Eu pensando em endoptismos, endossimbioses, encriptamentos, melancolizações constitutivas, espectros.
Eu às voltas com meus fantasmas, guardando-os comigo, possessivo, cioso, avaro.
Eu um dia tive ideia de escrever um livro. Era menino, e a ideia era pouco mais que um brinquedo – mas enquanto menino, evidente que levava brinquedos a sério. E por isso vivia encantado a brincar com meu brinquedo, todo imbuído dos arremessos que habitam o pensamento de moleque: haveria a hecatombe, um setor inóspito da Austrália teria sobrevivido por força de ter erigido à volta de si um bunker; a vida humana teria seguido ali, despida de toda a mundanidade e propósito, e incontáveis tempos depois surgiria um sujeito anacrônico, o ponto de perspectiva para a distopia ranzinza que era afinal de contas meu propósito: o sujeito vindo do mundo pré-hecatombe, estranhando os sujeitos do tal futuro distópico. Comentei a ideia com a mãe de um amigo que disse “puxa, é igual o 1984 – toma, aqui tem um exemplar, dá uma olhada”.
Matou meu brinquedo.
Gostei do livro.
Mas o livro matou meu brinquedo.
E é por isso que eu sigo atento – eu que não tenho, que não teria: não teria se corresse o risco de querer ter. E é por isso que as ideias que tenho, enquanto posso, guardo-as comigo.
Não bem como o Álvaro, que dizia ter guardadas consigo filosofias que nenhum Kant escreveu – não isso, porque filosofias eu cá comigo não as tenho, não muito.
Tenho cá comigo histórias e pedaços de histórias, personagens e pedaços de personagens, gente quebrada e esboçada que me acompanha onde vou.
Meus brinquedos.
Quando os vejo, e eles me olham, dizem-me eventualmente que as aventuras que vivemos juntos existem, e que deveríamos querer que existissem – mas eu sei que não. O lugar delas é ali naquele campo esquecido, naquele pedaço de terra fora do que importa do mundo, lá onde Winston, em 1984, pôde viver o sonho de querer ser alguém na companhia de sua coadjuvante fiel, aquela cujo nome esqueço porque, infelizmente, é assim que há de ser. Lá junto a Winston e à moça cujo nome esqueço sento-me esparramado, contente em minha meninice alheia ao tempo, verto animado sobre a grama meus todos-meios-brinquedos, escrevo coisas que ninguém escreveu, aventuras ocorrem com a atemporalidade que lhes confere a pouca graça que tem, e somos felizes para sempre, ou ao menos, enfim, por um começo.
Um dia escreverei sobre a Geni, que ajuda o Menino a escrever a história do Jardim Matilha. Um dia escreverei sobre o Soldado Alice, que naquela que ele aprendeu a chamar de Grande Guerra descobriu o Túnel que levava ao outro lado da trincheira, onde o Exército Vermelho era exatamente o dele, que na verdade era (ou deveria ser) o Exército Preto, aquele de onde vinha. Um dia escreverei sobre o Pedro, o Pedro que escreveu uma tese sobre A Expressão do Indizível (sobre Wittgenstein) e que reencontra sua amiga de infância, que vive com o João que é um cara meio deprimido mas ganha dinheiro com sua página humorística da “Gina deprimida”. Um dia escreverei sobre criptomnésia e as artes da memória, sobre os aparentes equívocos no entendimento que se faz sobre Clausevitz ao se falar sobre tática, estratégia e política em psicanálise, escreverei sobre drogas e sobre tatuagem – filosofias não me ocupam, nem as de Kant nem outras quaisquer; isso que trago comigo na sacola já me diverte o quanto baste.
Mas nada disso é para hoje, ou ao menos não para agora. Por hoje, e por agora, contemplo Winston e a moça cujo nome me esqueço, sentados ali ao meu lado sob a sombra dessa mesma árvore. E fico tranquilo. E o tempo passa, devagar, e de repente agora eu era anti-herói, e não tinha cavalo, e só falava talvez.
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