Ancestralidade

Vejo gente criando problemas
Pra competir quem sofre mais, porra, são covardes
Olhe pras sua nega véia e entenda
Que num é em blog de hippie boy
Que se aprende sobre ancestralidade

‘Bença’, Djonga

 

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Há um nexo problemático na discussão da ancestralidade, que diz respeito à sua função de elucidação de uma suposta origem. O problema que vejo nisso é que o ponto de origem depende sempre da interrupção relativamente arbitrária do nexo de transmissão – seja por falta de informação, seja por arbítrio de quem procura a própria origem.

Acontece assim, para tomarmos um exemplo comum, em relação a brasileiros que dizem ser “descendentes de italianos” – pois bem: onde essa pessoa está “mirando”? Onde ela encontra sua “origem” italiana? Nesse caso típico brasileiro que temos em mente, em geral a pessoa está “mirando” nos bisavós; essa história típica segue assim: “sou descendente de italianos. Minha bisavó, dona Gemma, veio num vapor, já grávida do tio Gennaro; passaram fome, laboraram muito e deixaram a meus avós a casinha em que eles vivem até hoje; meus avós também trabalharam muito a vida toda (meu avô no emprego, minha avó em casa) para que minha mãe/meu pai tivessem comida na mesa e condição de estudar etc etc, e bom, eu sou muito grato a essa minha ascendência italiana e tudo que minha bisavó lutou para que minha família pudesse estar onde hoje está”.

Esse é o tipo, um tipo clássico de declaração de ancestralidade ligada aos brancos brasileiros. Essa história é típica porque ela encontra subsídios firmemente estabelecidos em relação à história do branqueamento do país – a história do estímulo à imigração na virada do século XIX para o século XX. A maioria das famílias brancas conta com pelo menos um familiar que veio ao Brasil num vapor – foi quando “os brancos colonizaram o Brasil”, segundo essa narrativa típica.

Meu incômodo com essa narrativa é que ela é solidária a um processo deliberado de constituição de narrativa nacional que se presta a uma série de violências. Aqui convém retomar um argumento de Benedict Anderson, sociólogo que estuda o que ele mesmo chama de “comunidades imaginadas”: o processo por meio do qual os Estados-nação modernos recorreram a narrativas que permitissem sua constituição e estabelecimento. Esse processo se deu nos países europeus ao longo dos séculos XVIII e XIX, dando contornos ao que viria a ser o que hoje entendemos como “França”, “Alemanha”, “Espanha” etc etc – sabemos que a Europa é o “velho continente” e que aqueles lugares têm séculos e séculos de história, mas nem sempre nos damos conta de que essa história não se enquadra nos parâmetros dos Estados-nação que abrigam essas histórias aos nossos olhos; a mesma coisa se passou, em termos relativamente semelhantes, no processo de consolidação do “resto do mundo” – as colônias na América Latina e na América do Norte, as colônias na Ásia e, com um delay significativo, nas colônias africanas.

Na perspectiva de Anderson o caso brasileiro é considerado um caso atípico, porque há um esquema “bifásico” que não se encontra nos outros casos: o Brasil foi uma bizarra “colônia metropolitana” no começo do século XIX, no contexto da vinda da família real fugida de Napoleão, e com isso criou-se um lastro nacional e um impulso nacionalista que sobreviveria a si mesmo, mambembe, à espera dos demais elementos do dito “sonho nacional”, a comunidade pátria brasileira que só passaria a ser imaginada de forma mais sistemática a partir de 1880. E um dos grande imbróglios nesse contexto foi justamente a questão racial – não só ligado às massas de escravos libertos, como se costuma alardear, mas também em função das peculiaridades do povo brasileiro em geral, fortemente marcado pela ignorância, pelo isolamento geográfico e pela mestiçagem; esses elementos inspiram o “sonho brasileiro” de branqueamento, e o estímulo à imigração tem a ver com a imaginação de uma nação branca, intelectual e “racialmente” cultivada, uma nação progressista, batalhadora, reluzente e perfumada.

Entendo que o recurso prevalente à noção de “descendência” no Brasil – no contexto dos “descendentes de italiano”, “… alemão”, “…português”, “…espanhol” etc etc se refere imaginariamente a esse sonho nacional, e por conta disso lança raízes nos fundamentos racistas e discriminatórios de nossa dinâmica social. O que quero dizer com isso é que o recurso relativamente arbitrário[1] àquele bisavô ou bisavó europeu como “respondendo às origens” daquela pessoa (e de toda aquela família) funciona como modo de “imaginar a nação”.

Uma das consequências mais nefastas desse tipo de expediente é o fato de isso basicamente “apagar” a existência de uma ancestralidade brasileira – esse apagamento é decorrência simples do fato de que essa história dependeria unicamente da memorialística dos dominadores brancos, já que a população escravizada ou em condição de miserabilidade não tinha direito ou recursos para constituir memória. Esquematicamente: se os brancos elidem a própria descendência escravagista, ainda que os negros produzam memória de suas raízes escravas, eles não vão ter condição de lastrear essa memória em um trabalho propriamente memorialístico – já que a chance de seus ancestrais saberem sobre seus ascendentes, seu país de origem, a história de sua família é virtualmente nula (os negros escravizados em geral não guardavam sequer os próprios nomes).

Isso tudo, evidentemente, é esquemático: há de se recordar a população negra e livre, todo o processo de mestiçagem, as populações “indígenas” e seu papel na constituição do imaginário nacional.

As aspas a que recorri ao me referir “aos índios” talvez seja útil para que eu esclareça meu ponto: uso as aspas porque “os índios” é uma generalização simplista a que recorremos por ignorância deliberada – a população que já habitava pré-1500 o território que hoje habitamos é diversa, heterogênea e heteróclita, irredutível a um “denominador comum” – são diversas comunidades, etnias, diversas histórias e cosmogonias, que nós deliberadamente solapamos sob uma insígnia genérica: “os índios”. Não conheço pessoalmente uma expressão que refira de forma justa a essa população: estranho o termo “população originária” justamente pela questão das “origens” que tenho questionado sempre que trato deste assunto – afinal, não sei dizer se eles são “originários” desse território, e se soubesse estaria pensando em que tipo de “origem”? Mil anos atrás? Dois mil? Onde está o “umbigo” da origem de um povo? De onde me situo culturalmente, enquanto “brasileiro”, só consigo “enxergar” esses povos enquanto um genérico, “povos indígenas”, mais ou menos da mesma forma como só consigo enxergar a ancestralidade dos negros brasileiros como referida ao nosso lastro escravocrata; o que quero dizer com isso é que não ouço falar de um negro se ele é “descendente de angolanos” ou “… de moçambicanos” ou o que for; a maior parte, sei por cultura geral, deve ser descendente de angolanos, já que 70% dos escravos brasileiros foi trazida de lá – mas isso apenas nos remete de volta à questão das origens arbitrárias: eram capturados por tribos rivais na África e comercializados, e não saberia mapear com mais clareza como esses jogos de disputa e pertencimento se dão (como a maior parte dos brasileiros não sabe). Se soubesse, de qualquer forma, estaria apenas arremessado de volta à questão: trazidas para cá e escravizadas, essas pessoas tiveram suas histórias, sua memorialística soterrada e recusada, tiveram seus laços linguísticos, culturais, religiosos etc solapados sob o peso da dominação escravagista brasileira; e esse processo de dominação cultural foi somado ao impulso de imaginação nacional que estabeleceu a narrativa dicotômica e a-histórica de nossa pátria: “descendentes de europeu” e “filhos da escravidão” são a terra sobre a qual se fincou a bandeira nacional, em algum momento na segunda metade do século XIX.

Qual meu ponto aqui? Meu ponto se instala na confluência de uma série de pontos críticos: 1. a maneira como o povo brasileiro se apropria da história do Brasil lança raízes em uma comunidade imaginada que denega parte significativa de sua própria história; 2. essa história pode ser habitada de forma especulativa ou genérica, mas ela não é, em geral, “vivida” pela memorialística das pessoas (eu posso até especular que, se minha bisavó veio num vapor, meu bisavô, por outro lado, era brasileiro, e seus pais talvez fossem capatazes, ou bandeirantes, ou senhores de terras e escravos etc – mas é basicamente uma especulação, e é muito difícil lastrear isso no imaginário compartilhado); 3. o imaginário compartilhado, então, soterra boa parte da violência que lava de sangue as páginas de nossa história enquanto território e enquanto povo (povo heterogêneo, heteróclito e de raízes rizomáticas, mas povo todavia); 4. questionar o ponto onde a âncora do “pensamento ancestral” se deita acaba sendo, nesse mesmo gesto, um processo de questionamento sobre o apagamento de nossa história.

Todo meu ponto aqui diz respeito ao trabalho de violência memorialística que se processa sob a divisa de uma “descendência” europeia. Como já disse, sei que fui esquemático, e recorri ao esquema binarista branco-negro, mas fi-lo com um propósito em mente: o esquema a que recorri se propõe a demonstrar que há um trabalho de esquecimento submetido a um trabalho de memória. Ou seja: a cultuação de um certo imaginário nacional acaba rasgando o tecido de nossa memorialística, compactando nossa ancestralidade a um período de cinco ou seis gerações (o ponto de perspectiva, o infinito focal estaria lançado no máximo na geração pré-abolição). Entendo que a dinâmica desse processo se dá em termos distintos no que diz respeito àqueles que se reconhecem “mestiços” ou “descendentes de negros”, mas imagino que, ainda assim, haja uma problemática compartilhada no que diz respeito às raízes do “sentimento nacional” (na medida em que se rasga o fio histórico em algum ponto genérico às vésperas da convulsão nacional de 1870-1880 ao cabo da qual se pariu a pátria amada). Entendo, por fim, que a dinâmica em relação à memorialística dos “povos indígenas” deve se dar de forma distinta e irredutível a esse esquema, e imagino que haja grande potencial disruptivo no resgate memorialístico da ancestralidade no contexto de pessoas lastreadas nesse tipo de sentimento de pertencimento.

Acredito e invisto em uma pertinência específica ligada a esse esquema que proponho: acredito que questionar as narrativas de ancestralidade onde elas interrompem o fio memorialístico e “fundam uma origem” permitiria convulsionar os pontos de paralisia do pensamento identitário, promovendo questionamentos perturbadores, abrindo frentes de trabalho memorialístico possível – e acho que isso pode nos ajudar a promover maior potencial crítico e transformador no seio das políticas identitárias e no papel que elas podem vir a ter na luta política em geral.

[1] Quando digo que o recurso ao tal bisavô ou bisavó é relativamente arbitrário é porque se “escolhe” aquele ponto como o ponto que “explica as origens” da pessoa e de sua família. Se ela pensa em seus pais, por exemplo, como lastro de sua descendência, ela descende de brasileiros, não é mesmo? Por que “pular” essa parte e “mirar” no bisavô ou bisavó? Sabemos que quando o ponto de referência é a Europa, por exemplo, o cálculo tende a ser o inverso: um “descendente de indianos” cujos pais são filhos de imigrantes, mas nasceram na Inglaterra, bom, essa pessoa vai se considerar inglesa, e tem todo direito de fazê-lo. Voltando ao Brasil e invertendo a análise, há também a questão de pensar sobre a ascendência do tal bisavô ou bisavó: os pais dele, tataravós da pessoa em questão, são italianos também? São ciganos? Judeus? Emigrados gregos ou turcos ou …? Enfim: o normal é que não se questione muito além da primeira ou segunda geração lastreada na Europa – e isso não me parece casual.

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