Ai, ai.
Vamos lá?
Estamos só nós aqui. Só nós dois. Então não vai ter aventura, não vai ter diálogos estimulantes, nem vai ter dinâmicas incríveis. Só nós dois aqui, pensando juntos; pode ser? É como tem que ser, então espero que você tope.
Tem todo um mundo lá fora nos observando de perto, e eu sei bem disso – eu sinto seus bafos quentes no meu cangote, sinto o peso do seu julgamento, sinto queimar em mim o ardor da sua má-fé; mas eles não estão aqui conosco: são encostos, são assombrações, são um engodo.
Esquece eles. Somos só nós dois aqui, só isso que importa.
Você não me ouve, nem me enxerga, eu sei. Provavelmente nem sente mais meu cheiro, nem sente o toque de minha mão na sua pele – no fim das contas o mais provável é que, pra tudo que importa, você já não está mais aqui, e eu, no fim das contas, estou só conversando com um pacote de carne que já nunca mais vai ver a luz do dia.
Mas eu preciso de você aqui. A gente precisa fazer isso juntos.
Eu queria te contar algumas coisinhas, você se importa? Não quero roubar a cena nem nada, vou falar tudo rapidinho, prometo. E não vou chorar.
Eu sou só. E apesar de todo mundo ter isso escancarado diante dos olhos, o fato é que só você de fato enxergava isso. Só você de fato esteve aqui comigo.
Eu passava, passei, passo, passaria ainda por aventuras, peripércias, entreveros – eu pintei e bordei diante dos olhos do mundo, sei bem disso. Sei que o mundo me viu passar, sei que muitas mãos gentis me tocaram, muita gente esteve à minha volta; houve quem se importasse – rostos e vozes; borrões e ruídos.
Tanto ruído, um enorme distúrbio, tudo atravessando um arremedo de história, tudo esgarçando um grande e gordo nada, travestindo sem estilo nenhum uma vida vivida, uma existência, um alguém que esteve aí. O tempo falso pra uma falsa existência à sombra dos olhos do mundo.
Eu falei que não ia chorar, né? Desculpa. Você sempre me desculpa, né? Você me entende.
Ai, ai…
Tudo que passamos juntos.
Eu lembro de você, sabia? De verdade. Eu vejo você ainda aqui – você de verdade, não esse troço: você.
Você vai estar pra sempre comigo – aqui, onde importa. Mesmo depois que esse coração já não bater mais, mesmo quando já não houver mais respiração pra acolher a angústia que poderia muito bem ter sido meu sobrenome. Angústia, meu nome primeiro, o nome que sobrevoa minha história, que faz ela poder ser, enfim, uma história.
A gente vai lidar com isso tudo juntos. Mesmo depois de daqui a pouco.
A Ana vem limpar a casa amanhã, ela vai cuidar de tudo – eu deixei um recado ali no balcão da cozinha, todos os detalhes e contatos, o contato lá na funerária, o canhoto do pagamentos dos boletos pros serviços, a lista de convidados, as indicações pro crematório. Deixei uma carta pro Pedro, que acho que vai conseguir dar conta dos preparativos sem o fuzuê todo que o Paulinho faria; disse que a gente combinou tudo juntos, tá? Eu acho que não é um problema se a mentira for um jeito de fazer tudo dar certo; e eu sei que você também pensa – pensava – assim.
Super grave tudo isso, né? Eu sei. Queria que a gente tivesse podido conversar a respeito, mas sei que você não toparia – você sempre cuidou tanto de mim! Sei que ia querer me convencer, ia querer ser firme e dizer que não, de jeito nenhum; ia se exaltar e ficar tossindo sangue, tentando falar sem conseguir; ia me olhar com aquela sua cara de cão sem dono a que eu nunca soube resistir.
Você ia me fazer assistir tudo, até o fim. E ia querer me convencer a sobreviver, a seguir em frente, encontrar um bofe, ser feliz de novo.
E você sabe que eu não sei como fazer isso.
Não posso.
Não vou.
Não quero.
…
Então acho que é isso, amor, vamos lá, então.
Dá uma licencinha, faz favor? Isso, bem juntinho, assim – um bem do ladinho do outro.
Até o fim.
Dá licença, só mais uma coisinha, aqui – já foi a sua injeção, agora é a minha, né?
Prooonto.
Dá um beijinho, amor. Você também nunca acreditou em outro lado, nem em além, nem em nada disso, né? Então acho que é só tchau mesmo.
Parabéns, Will.
Seus textos sempre conseguem me tocar, mas esse em específico…
Fico feliz que tenha gostado, Ernani! E agradeço pela companhia fiel nessas aventuras literárias!