Eu queria ser o tipo de compositor que pudesse, verso em prosa, fazer-se imerso em faustosas circunstâncias, dessas fantasiadas ainda mas que, cheias de zelo, dão-se as mãos e se atam os fios, articulam-se em densa trama, os dragões saindo devidamente carrancudos das devidamente escuras cavernas, os mistérios, misteriosos como nunca, entregando-se em porções precisas, calculadas em balança eletrônica, cativando o leitor conduzido com zelo e precisão pelo narrador devidamente travestido em seu estilo livre indireto, camaleonisticamente adaptado às circunstâncias dos ambientes e ritmos, fluxos, tempos, e peripércias, ah!, mas que cabeludas peripércias, e o pessoal d’Os Karas, saudosos personagens emersos daquela literatura infanto-juvenil canarinha, trajados em nostálgicas vestes do auge dos anos 90, ainda que a moda naquele tempo errasse em sombrias paragens, mas ainda assim vinham elegantes em suas nostáligcas vestes Os Karas do Pedro Bandeira, e vinham astuciosamente articulados com a fina flor de uma infantojuvenilidade mais contemporânea, de forma que teríamos Os Karas em aventuras com Hermione e Harry Potter, e Percy Jackson e todos os demais gringos, e teríamos a Mônica e o Cebolinha quem sabe coadjuvando por ali numa ou noutra tirada sardônica, ponderando quem sabe as complexidades facilmente superadas dessa insólita mistura de dragões e cavernas e infantos-juvenis, sem falar no príncipe em seu cavalo branco que haveria de vir articulado ao dragão, venda casada que usualmente são o dragão e o príncipe e o cavalo branco, e veríamos a essa altura, alegremente espantados, que o príncipe aqui não é ninguém menos que o João do Chico, ele que cavalgava um azarão poliglota, e o narrador quem sabe sugerisse que o cavalo falava o inglês com a prosódia e o sotaque daqueles narradores soporíferos do Discovery Channel, e infelizmente numa circunstância como essa o narrador compreensivelmente sentiria uma pontinha de inveja ao narrar em estilo livre indireto a pompa e a circunstância oniscientes daquele cavalo que em inglês falava do que passava nas savanas africanas, oniscientemente discriminando a vida sentimental dos leões e das hienas e do pobre filhote de bizão que tragicamente se perdia da manada em frenética fuga, e em meio a filosofias de escassa profundidade emotivamente narradas pelo cavalo de João o pobre filhote de bizão haveria de engolir em derradeiro gole lacrimoso a dureza que é a vida selvagem no Discovery Channel, a menos, é claro, que o narrador, sendo ali ninguém menos que o cavalo anglófono do João, avançasse com imbatível coragem e invencível força conforme diante de leões e hienas, protegendo o filhote de bizão de trágico fim nas garras do leão ou das hienas, ou, pior de tudo, nas garras conjugadas dos dois grupos de predadores, se porventura se passasse ali uma coalisão nefasta, evidentemente supondo que não se trata de Mufasa, que jamais se associaria à escória que são as hienas, não Mufasa, o saudoso rei da selva, pai de Simba, herdeiro e legítimo senhor de tudo que a vista alcançava, exceção posta, já que até nos desenhos animados há letras miúdas, exceção posta ao cemitério dos elefantes, cemitério habitado pelas hienas que nesse exato momento saltitavam como que atiçadas pela pródiga verbosidade do narrador, que imaginemos, para beneplácito do pobre bizão, imaginemos apenas que o narrador seja ninguém menos que o onisciente cavalo anglófono de João, muito embora o cavalo anglófono, afeito que está à sua própria graciosidade de locutor de documentário do Discovery Channel, afeito que esteja à etiqueta e aos bons modos que ele aprendeu ao fio de horas meditando sobre as filosofias profundas que as savanas nos ensinam, podemos enfim apenas supor que um locutor maduro e sóbrio como esse não haveria de querer decepcionar nosso emocionalmente volúvel narrador trajando estilo livre indireto, e por força dessas circunstâncias improváveis eventualmente nosso valoroso azarão veria despontar ao longe o tipo de reviravolta improvável que apenas um locutor livremente indireto poderia ter visto, e é nesse exato momento que a espada mágica de João lança um mágico raio brilhante que atravessa num átimo toda a planície da savana, atravessa planícies inteiras e ainda vales e infindáveis desertos, o raio passa de maneira um pouco brega e exagerada através de tormentas e calmarias, seu brilho e fulgor iluminando por um fugaz instante as vidas de inúmeras vidas selvagens, e os raios iluminam as espantosas serpentes da foz do Nilo que produzem verdadeiros mares de ovos prenunciando o milagre que é a sobrevivência desses assustadores répteis no avassalador calor do impressionante deserto do Saara, e veremos ainda as majestosas águas cristalinas do lago secreto conhecido apenas pelas tribos locais dos recônditos limites do Quênia, e no último bloco vemos ainda as impressionantes corridas de balões singrando os ares estáticos do verão do Saara, e rapidamente nos distraímos pensando na insistência em fazer notar como são impressionantes as coisas impressionantes, mas recuperamos a atenção em tempo de perceber que o raio mágico de João, sempre montado em seu bilíngue alazão, o raio mágico de João conjurou através de toda essa vida fantástica que colore mundos que o cidadão do outro lado da telinha jamais vai poder conhecer, através de toda essa ostentação de uma natureza artificalmente estrangeira e idealizada, através de todo esse estranho fenômeno televisivo das mais tristes e infelizes noites de sexta-feita, através de tudo isso João trouxe à existência e pôs ali, diante de nós e de nosso espanto, e da indiferença do telespectador anestesiado, ali diante de todos nós João e seu raio mágico conjuraram Sérgio Chapelen, ele que há quarenta anos não envelhece, ele que conhece segredos que nenhum mago do Reino de Arthur conseguiu desvendar, ele que certamente em alguma cobertura para o Globo Repórter há de ter descoberto, negociando o marfim do último elefante branco com povos mamelucos do Quênia e fugindo de inuítes incomodados com os equipamentos de som da TV Globo, ele nesse momento tão delicado de sua agitada vida há de ter descoberto o elixir da juventude, e é por isso que quando até a Anitta já estiver morta e enterrada e os irmãos e filhos e netos Marinho forem apenas uma distante memória na história do Brasil que já ninguém contará, já que ninguém quer correr o risco de ser indiciado e condenado por viés ideológico, pois bem, mesmo nesse distante futuro pós-histórico Chapelen seguirá em sua jornada, narrando fantásticas paisagens para que sonhem tranquilos os honestos trabalhadores da pátria amada, abraçados a suas latinhas de Itaipava e rancorosos por sua machucada hombridade posta a prova por suas pujantes panças ociosas, mas antes que amanheça João e seu cavalo anglófono, as hienas e Mufasa e, espantosamente, Simba e Timão e Pumba, o dragão ele-mesmo e montados em seu espinhoso dorso todos os protagonistas do primeiro escalão da turma da Mônica, em suas versões corretas e neotênicas e não nas bizarras versões de anime adolescente que se lê do lado errado, afinal sabe-se lá que tipo de aventura bizarra teríamos aqui se tivéssemos conosco heróis adolescentes em versão nipo-brasileira, pergunta-se o locutor livre indireto que por um segundo pareceu hesitar ao pensar que uma trilha sonora cairia bem para retratar o espanto incrédulo de nosso pançudo herói brasileiro ao ver seu sonho acossado pela hoste bizarra de personagens heteróclitos, hesitação que no entanto cedeu ao sabor da urgência no instante em que se deu conta, não o pançudo heóri brasileiro mas nosso narrador livre indireto, no instante em que se deu conta que trilhas sonoras dependem de uma experiência cronológica incompatível com o caráter oniróide da cornucópia fantasística que acossa e conduz, ainda que mal e porcamente, nosso mergulho vertiginoso rumo a um estancamento súbito indicativo de uma espécie de despertar a que só cabem o tom basal de um diapasão ou de um relógio de corda, ou a estática de algum equipamento elétrico circunvizinho, indicadores tranquilos todos eles, como o seria um hipnotizador experimentado que encerra sua sessão, indicadores enfim de que estamos afinal saindo da intensidade afoita e retomando algum tipo de ponderação meditativa.
Pois bem, eu dizia que eu queria ser um tipo de compositor que, prosa em verso, mergulha a caneta no tinteiro já sabendo a fonte, o leito, o curso e a foz de seu fluxo.
Mentira.