T’s some blues you got

– Enche um Cynar pra mim, ô Tonho!

   Tonho enche, quieto. Bate o copo na frente dele. Olha bem pra ele enquanto ele pega o copo, sem olhar pro Tonho. Tonho pergunta:

– Que aconteceu? Vai pra casa!

– Eu ia. Descarregou a porra do bilhete, sei lá. Eu pus cinquenta conto ontem mesmo, sei lá o que deu. O chefe já não estava lá e o menino falou que não era nem besta de encher de novo sem pedir pro chefe. Rodei, Tonho; rodei.

  A cara dele entorta – o Cynar não explica, o bilhete não explica. Tonho não se intromete tanto.

– E a mulher, está bem?

– Como eu vou saber? Está lá em casa me esperando, acho. Liguei do orelhão, ela não atendeu. Depois acho que vou voltar para a loja e ligar no celular, que ela vendo quem é ela atende. Os caras estão ligando direto lá, o fixo a gente já não atende mais, não.

– Você está dormindo? Está com uma cara de atropelado…

– Virou minha mãe, Tonho? Enche o Cynar aí que está osso.

– Oxe…

  Tonho se irrita, quer retrucar, mas prefere não – ele está mesmo com a expressão estranha, estranha demais. “Esse nego só se fode”, ele pensa. Enche o Cynar e volta para a conversa com o Beto e o Pequeno, no canto do balcão.

  O Cynar acaba de novo, Tonho não está olhando – ele bate nos bolsos vazios (ninguém vê, mas ele faz o gesto mesmo assim) e sai. Voltar para a loja levaria meia hora a mais, dois quilômetros a mais. E ele não tem tempo, embora não tenha nenhum compromisso marcado.

  Ele se dirige para sua casa a pé; a idéia – se fosse uma idéia – é péssima, ele levaria três horas para chegar. Mas ele não pensa, faz o caminho do ônibus a pé com uma certa pressa, como se fugisse de alguma companhia incômoda, como se corresse em direção a algum conforto.

  Uma hora de caminhada e ele desiste. Pára no ponto e chama o ônibus. Embarca e senta na frente, procurando saídas que ele sabe que não existem.

  Aperta o botão para descer do lado da frente do cobrador, finge que se espanta quando o bilhete recusa a passagem. Pede para o motorista não sair ainda, tenta de novo. Olha para o cobrador com uma cara mal-feita de desolação.

– Eu moro aqui, tem crédito no bilhete, não sei o que aconteceu. E agora? Libera aí pela frente…

  O cobrador quer deixar, o motorista não. Ele estoura, xinga o motorista. O motorista xinga de volta, mas abre a porta:

– Bêbado miserável… salafrário…

  Ele desce meio correndo. Olha o ônibus indo embora, a raiva crescendo. “Devia ter batido no escroto”.

  Na ladeira que leva a sua casa a raiva vira desconsolo; ele recurva as costas como se antecipasse um colo confortador, uma compreensão que precisa demais. Mas sabe que não virá. Solta um guincho, a sombrancelha franze um começo de choro.

  É o desmazelo, uma dor muita. A ladeira massacra o homem, e o choro só não sai porque ele ainda é macho. Algo que já vinha quebrado dentro dele remói, o vidro por dentro rasga a carne.

   Ele abre a porta como um condenado; a casa está escura. “Cadê a Maria?”, ele ainda pensa.

 

28 de janeiro

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