Ele teria um barco, e seu barco se chamaria “O desengano”.
A bordo do desengano ele singraria mares e vidas, e a dor de uma amizade rompida, e uma estadia num país estrangeiro trocado por outro ainda mais estrangeiro, porque ele ama a vida e não as coisas da vida e seu tempo impõe que ele se despeça.
O desengano seria seu lar e seu futuro, e seria a partir do desengano que ele contemplaria as praias distantes e as pessoas vivendo suas vidas. E as pessoas seriam pequenas – bem pequenas – dando a seus pequenos – bem pequenos problemas – muito mais atenção do que o que se deve.
E só ele, a bordo do desengano e a quilômetros de qualquer porto, perceberia quão fúteis e miúdas são as humanas preocupações.
E ele seria sábio por isso; porque saberia dos homens sua mesquinhez e miudeza, e a fugacidade de seus problemas e a estreiteza de sua visão.
E ele escreveria simples e corretas observações, em seu jornal de viagem, tudo percebendo e entendendo.
E estaria em comunhão com estrelas, com o mar, com os animais que como ele singram a superfície das águas. Ele seria a sabedoria do mundo, o ponto onde a terra e sua verdade se sabem a si mesmos.
Ele não faria escolhas, porque não haveria um ponto de dúvida ou bifurcação em seu destino; seu rumo seria claro e translúcido à sua frente, como quem olha uma coisa simples e vê a coisa em si.
E não sentiria dor, nem fome, nem alegria nem tristeza, porque as oscilações das vidas dos homens e as incertezas dos destinos dos seres lhe seriam alheios e indiferentes. Dirigiria o desengano como se ele mesmo fosse uma onda, a onda que sabe todas as ondas, a onda que é, de onde as ondas ondejam.
Ele seria, e só.
E seria, então, errado considerar que ele está só – pois ele não está, ele é: ele, o desengano, e as ondas, e os animais que singram a superfície das águas.
E aí já não doeria mais.
19 de janeiro
Senti-me numa marola, sendo, somente.
Lindo texto! Parabéns!
Abraço=)