A Iara Iavelberg, que não conheci, que morreu, e a quem admiro
Ana era uma mulher bonita, sempre achei isso. Mas naquele contexto, e daquela forma, seu rosto a um só tempo suave e ferino, delicado e decidido, parecia emanar algo da ordem da santidade.
Ela cuidava do ferimento – apertava a ferida com a mão esquerda enquanto manejava com a direita a gase, o esparadrapo, a tesoura; não parecia ter pressa. A lembrança que me fica, e que sei ser provavelmente afetada pelos meus afetos, é de que ela cuidava do ferimento ao mesmo tempo em que me dizia aquelas coisas todas. Não sei, e nunca saberei, se de fato aconteceu assim: o que sei é que ela cuidava da ferida, com uma tranquilidade que denotava a convicção de ser um cuidado protocolar ou cerimonial, eu mesmo não fazia nada, perdido entre meu susto, meu rifle e meu desespero. Além disso sei, e lembrarei sempre, de como ela me olhou nos olhos, e disse aquilo como quem deixa uma mensagem de fé a um apóstolo.
– A vida é uma roseira, imensa, imensa, e eu vivi boa parte imersa entre a aridez da terra e o roçar dos espinhos. Eu me sabia pouca, eu me fazia rouca, eu me perdia inteira, eu me sentia ínfima. Mas eu perdi o medo, perdi meus segredos, o senso dos degredos degradou-se, e vi: vi adiante a rosa, e era primorosa, a coisa mais formosa que um dia vi! Era um detalhe e um todo, era um segredo exposto, a cura pro desgosto – o que eu queria, eu vi. Lancei-me então afoita, pois quando a sorte açoita, acorre o senso e cessam as chances de fugir. A rosa era o mais belo, o mais profundo anelo, e encontrava mais do que havia ali; pois já tornou-se pouca, e eu ficando rouca, pois perdia a chance de um êxtase. E assim se me escapava, era dor amarga: a flor não era nada, nada havia ali! Eram folhas tortas, cores menos mortas, e no nada envoltas, nada a recobrir; um vazio inteiro, alguma cor no meio, era só rateio a disfarçar o fim. Pus-me em polvorosa, aflita e furiosa, destrocei a rosa, em garras e dentes; e ela foi sendo minha, e eu fiquei sozinho, e ela entrou em mim, e só então eu vi: era eu a rosa, era primorosa, a luta ardorosa, para existir. Eu brilhei ardente, estava tão contente, empolei-me à frente, da roseira minha, e saltei imensa, procurei a imprensa, era a mais intensa flor do meu jardim. E então agora eu vejo, já não pestanejo, o ar faz-se sereno, chega então meu fim; esse é meu outono, meu eterno sono, abrirei meu nada, e seremos nada, eu empoleirada, no nada que há de vir.
“No nada que há de vir”.
Ana suspirou, por fim, e seus olhos se fechavam, pacíficos, assim que entoava a última sílaba de sua poesia de morte.
Já não sei quanto tempo se passou desde que Ana morreu. Esmurrei as paredes, bati contra o chão meu rifle, rasguei minhas vestes, pus-me fetalizado em meio à água da chuva que lava-me a alma, os tiros insignificantes, essa guerra sem sentido, eu sozinho aqui, eu e Ana, pétalas caídas ao meu lado.
Lembro, vagamente lembro, que ela me disse coisas, coisas poéticas. Sobre uma rosa, foi isso? Rosa, e pétalas. Porque essa vida é uma roseira, um monte de espinhos a brotar de terra infértil, folhas feias e galhos retorcidos, e quando vemos a rosa e saltamos em sua direção, tudo que encontramos sãofolhas coloridas abraçando o nada, o vazio de dentro, e o vazio de fora, e a beleza…
A beleza em lugar nenhum. A beleza em mim.
Nessa trincheira, em meio a esse nada, ao lado dessa carne quente que foi um dia Ana, aqui, a lama em meio à lama, aqui vinga a mais bela rosa. Aqui floresce a vida, explode a vida, o vazio sacralizado pelo tempo que são as pétalas, fugidias pétalas, pétalas que abraçam o vazio de dentro como abraçam o sabor da morte que vem – e vem: ouço já os rumores. É a guerra. É a terra. É a sorte, é a morte, é o rufar dos tambores anunciando o amor. E eu vou.
O rifle, que já não deve funcionar. As vestes rasgadas. A sorte lançada. Morro, pois é primavera, e é tempo de vida, de preencher o vazio em mim com o vazio que em mim esse vazio merece. Que venham as balas, a sorte, e o outono, e a morte. Que venha a Ana: que venha o amor.