Dá quase vontade de ser pego no corredor, subindo as escadarias com uma garrafa de whisky e um baseado na mão. Seria bem engraçado, na verdade.
A cobertura continua esquecida, mal-cuidada; acho que ninguém nunca vem aqui. Apesar do descuido é um lugar até agradável, com a solidão, e a vista, e o vento. Queria estar mais em paz, mais confortável.
Paz de espírito deveria fazer parte da mobília em lugares como esses; se eu venho para cá é óbvio que quero paz, e se quero paz eu não estou em paz; que merda. Por isso vive vazia.
Bom para mim que eu vim acompanhado. Mais um gole de whisky, essa maconha – o tanto dela que eu não tossir – e eu já, já me acalmo. O vento me pegando encostado ao parapeito de repente parece mais refrescante, como se eu estivesse mais quente, ou mais sensível, ou como se de fato estivesse esfriando, ou os três – sei lá, acho que tanto faz. O trânsito já melhorou – que desgraça!, quando eu voltei para casa há menos de duas horas estava um trânsito infernal, digno dessa cidade infernal.
É… é uma vida puta.
É…
Aninha, Aninha. Ainda hoje de manhã ela estava amável, delicada, acessível. Como essas coisas acontecem?
Que frio…
12:30 e já não tem mais ninguém. De novo ela saiu para almoçar com as pessoas do departamento dela. Vagabunda! Por isso não atendeu o celular, estava com vergonha, com certeza. Deixou o celular em cima da mesa…
“Seu retardado! Quem te deu o direito? Se eu descobrir que você quebrou qualquer outra coisa eu juro que te processo! Vai se tratar, aproveita e vê se some! Nem responda.”.
Nunca passa ambulância por aqui. É uma pena; eu acho conveniente quando uma sirene de ambulância soa ao fundo em momentos contemplativos como esse. O vento sibilando faz uma parte do truque, e a cobertura abandonada dá um toque de classe. Talvez se eu estivesse pelado, e se chovesse…
Qual é o sentido de tudo isso? Eu não sei por quê me disponho a essas farsas, esses jogos. Quem ganha com isso? Ninguém dessas pessoas me conhece de verdade, e não quer me conhecer. Jogo minha vida fora nesses falsos encontros, falsas conversas, falsas vidas, como se algo disso dissesse algo sobre mim, como se houvesse alguma grandeza no que eu faço, como se no fim da linha eu não fosse só mais um errante fingindo alegrias e sorrisos; eu deveria me esconder atrás de um buraco qualquer e viver sozinho, virar psicanalista e me enfiar numa poltrona como o Raul, enfiado na poltrona enfiando o dedo na ferida dos outros; deveria viver especulando lixo na internet, comprando e vendendo lixo de otários para comprar lixo para comer, pela internet também. Deveria virar otário de uma vez.
Preciso apagar essa programação toda – de novo. Não ganho nada ficando aqui; já tomei três “cafés”, saí para ir ao banheiro várias, vezes; todo mundo vê que não estou trabalhando, não estou fazendo nada. Vou embora, foda-se.
“To: Beto cel. Date: 27/03/2012, 11:46. Text: Ai, Beto, claro que gostaria! Mas você sabe que o Dado ficou meio esquisito, parece que é ciúmes, não sei; relaxa, eu te ligo quando puder.”
Sem que pudesse se dar conta ele foi se perdendo em si. Começou a chover, e há cerca de dois minutos ele se dispôs, tão inesperada quanto resolutamente (mesmo a ele), a tirar as roupas, agora amarfanhadas e ensopadas em um canto da cobertura. Apoiado ao parapeito, o olhar cinzento, ele contempla o movimento dos carros nas ruas distantes, as luzes dançando ao sabor das gotas.
Por que será que as pessoas se aglomeram em cidades assim? Eu queria ter tido pais Amish – nunca ter visto televisão, nunca ter saído da cidade, nunca ter conhecido as imensidões dos outros, dos outros lugares. Dos lugares dos outros. Eu devia ser escritor, viver de farsa.
“1 Comment. From: Anonymous. 12 March, 2012. Eu nunca entendi por quê você escreve coisas tão tristes; eu te conheço… você é filho de rico, não é? Acho ridículo esse pessoal que cria gosto pela tristeza dos outros, deve ser falta de cinta”.
‘Dormiu bem? Você está linda hoje’; ‘É, eu pensei que a gente poderia almoçar juntos, será que dá? As coisas andam bem corridas no seu departamento, né?, você tem ficado muito tempo enfurnada lá’; ‘Sabe o que eu pensei? Talvez você estranhe, a gente se conhece há pouco tempo, mas… você tem vontade de viajar? Eu sempre quis, desde criança, ir ao Machu Picchu, que você acha de irmos juntos?’; ‘Claro, eu também preciso subir; pensa no almoço e me avisa, pode ser?’.
Como eu sou idiota! Ela nem é minha mãe para ir comigo viajar assim, só porque deu na telha. Minha mãe… ela parece minha mãe; será que eu me interessei por ela porque ela é minha mãe no meu sub-consciente? Eu li alguma coisa assim nas coisas do Raul, depois que ele virou psicanalista. Eu nunca quis comer minha mãe, acho. Eu quis comer a Aninha? Queria que ela fosse almoçar comigo, disso eu sei.
De novo um pirulito na minha escrivaninha; que é isso? Deve ser o Tiago, ele vive falando comigo como se eu fosse criança. Qual é a dele?
Caixa de papelão; whisky Grant’s; maconha – ou pelo menos parece maconha. Recado digitado: “Para você virar gente grande, meninão. Dos seus amigos”. Desde 15 de março encostada num dos cantos vazios da sala do flat. Ele leu a carta três vezes, sem entender.
“Mãe? É, eu estou bem, sim. Não. Conheci uma menina no trabalho, mãe! Linda! Pensei em chamar ela para sair – é chamá-la, mãe, certeza? Não sei, não, hein! E o pai, está bem? Que ótimo, avisa que eu mandei lembranças”.
“New post: “Um outro lugar para viver”. ‘Eu escrevo como quem distribui sementes ao vento; nunca se sabe o que germina, quando, como, por quê. Acredito que o que me compete é escrever, e escrever só. Se pudesse eu seria um livro – só uma história, escrita por não sei quem, aquilo que em mim habita vivendo nos outros, e em mim só como tinta escrita, eu como portador de vida possível nos outros, caso lhes compita ler o que me é, só por curiosidade.’
Chefe? Aqui é o Eduardo, do setor de T.I.. Chefe, eu acordei indisposto e preciso ir ao hospital, não sei se estou com intoxicação, enfim, acho que não consigo ir trabalhar hoje. Se for liberado eu apareço depois do almoço, ok? Tenho alguns trabalhos online pendentes, vou investir neles e te dou um update antes das 18h, sem falta. Amanhã levo o atestado! Desculpe pelo imprevisto, devo ter comido alguma coisa diferente, não sei. Enfim, desculpe! Bom trabalho para vocês, digo… é, isso, obrigado, chefe! Abraço!
Eu vou comprar uma samambaia para o apartamento, acho que vai me fazer bem. E acho que preciso de móveis, também – se bem que não sei para quê.
“Senhora Ana Lemos? Flores para a senhora; o remetente pediu para não ser identificado. Esse cartão vem junto. A senhora assina aqui, por favor?” “Floricultura Paes e Mendes – cartão. Aninha, desculpe, eu fui uma criança”.
E se ele fosse outra pessoa? Ele poderia ser um homem bem-sucedido, afirmativo, apesar do tanto de si que desconhece, fechado a si por um medo infantil. E ele seria como tantos, o retrato do terno cinza que porta uma criança, como os milhares que roçam ombros nas avenidas nos horários de almoço. E ele certamente teria mais traquejo ao fumar maconha, e certamente o whisky seria dele, bem como a maconha; ele tomaria o whisky em copo de whisky, e não no gargalo como o fez; talvez ele tivesse um apartamento bem mobiliado, com cara de loja de shopping center; talvez ele tivesse tido uma relação tórrida com Ana Lemos, e tivesse brigado com ela porque ele mesmo teria traído ela com a florista; ou algo menos previsível. De qualquer forma ele certamente não estaria pelado a essa altura, e é pouco provável que tivesse se disposto a tomar chuva – estaria em seu apartamento, talvez escrevendo algum absurdo para Ana Lemos (que certamente não o leria, já que ele mesmo quebrou seu celular ainda na hora do almoço). Ele provavelmente terminaria estirado na cama, cortinas fechadas pelos calmantes no criado-mudo, ou caminhando a esmo pelas ruas como um bom personagem de conto lúgubre.
Acho que alguém escreve nossa história; não Deus, nunca consegui imaginar Deus. Acho que eu sou personagem de um livro de banca de jornal ou, pior ainda, do blog de algum desocupado que inventou uma desculpa chique para exorcisar seus demônios em personagens mal-acabados. Por isso eu tenho tantas pontas soltas, tanto mal-estar, tanto vazio, não consigo nem ter uma bad trip direito. E seríamos personagens aleatórios de escritos distintos, tentando nos entender como se fosse possível, perdidos nessa terra de ninguém, sem enredo e sem contexto; eu nasço porque meu Deus teve um tempo ocioso, deixo de ter existido porque ele resolveu que está na hora de ir almoçar. Vai almoçar e me deixa sozinho, pelado numa cobertura mal descrita, sem concretude, sem apelo emocional, a chuva a me lamber o rosto, eu tentando disfarçar de mim mesmo o frio que sinto e a vontade enorme de que isso não tivesse jamais acontecido. … que idéia horrorosa subir aqui!
‘Sabe se o Dado já chegou? Parece que ontem ele pirou e quebrou o celular da Aninha, ela deu um come nele no Talk da empresa e o diretor está revoltado com ela, soube dessa história? Ele sempre pareceu meio perturbado, será que ele se matou?’
E agora, como eu faço? De repente estou pelado na cobertura do prédio, minhas roupas encharcadas, eu mesmo encharcado. Está frio, meu Deus!, como está frio! Vamos lá, autor da minha ridícula existência, bate a claquete e vai almoçar, me desexiste, pode ser? Garçom, uma porção de bom-senso para o autor, fazendo o favor!
Restituído de sua lucidez após uma longa viagem pela vertigem e pelo desvario, Eduardo é tomado da mais profunda vergonha. Jamais sentira tamanha vergonha; curiosamente estava ainda sozinho, como antes. Deu-se conta de que estava adiando o momento de voltar-se, desapegar-se do parapeito, como se encostado ao parapeito estivesse menos nu, como se existisse menos. Criou coragem em um insuflar de peito e correu para as roupas, abraçando-se a elas e correndo para o lado interno da cobertura; vestiu a calça jeans com grande esforço, jogou a camisa inteiramente aberta sobre o corpo (nem vestiu os braços) e carregou as outras coisas – meias, sapatos, cinto, carteira, o cartão de identificação da empresa – consigo.
Agora já não queria ser encontrado no corredor. Deu-se conta, já nas escadas, de ter esquecido o whisky e os restos do cigarro de maconha na cobertura. Ficou com medo de ser descoberto.
Pensou então em sua mãe. Talvez ele fosse mesmo, como os “amigos” diziam, uma criança, uma criança em busca de pirulitos.
Talvez o que ele quisesse com o blog fosse um grande pirulito, colorido e redondo, para que ele sentasse no colo de sua mãe e se divertisse lambendo-o, hipnotizado pelas voltas multicolores.
Talvez ele quisesse se sentar no colo da Aninha e chupar um pirulito, ainda agora. Talvez ele quisesse, talvez ele devesse pedir desculpas a ela.
Ele certamente estava morrendo de vergonha e desejava mais que tudo ser engolido pelo fim do conto de sua vida, simplesmente deixar de existir. Mas ele sabia que isso não aconteceria. Sabia que teria de viver o que seguisse, encarar os pirulitos, as risadas, encarar o elevador. Encarar a falta da Aninha, agora, e amanhã e depois. Encarar a solidão do flat, a falta da mamãe e do papai e da varanda com a rede e as plantas. Encarar a vida e as noites sem sono, e as noites de sono, e os dias, e os horários de almoço.
Sabia que nunca seria um terno cinza portando uma criança, roçando ombros nas calçadas, nas filas dos self-services, nos cortejos das mulheres atraentes e superficiais, na diversão-de-comercial-de-cerveja a que tanto aspira, envergonhado.
Perdido em pensamentos de um desespero quase acolhedor ao longo da vertiginosa escadaria, ele quase desejou, por um segundo, que a escada se desdobrasse infinitamente e sumisse no infinito; encaracolando-se em giros cada vez mais rápidos a escada se fecharia sobre si mesma e ele se terminaria em angústia e cinzas, como um pirulito de fel que se consome às mordidas, obesamente. Mas seu andar chega, e ele, tendo gingado seu corpo em direção a mais um lance, percebe que não ganharia nada descendo descalço e molhado até o térreo e se força a dirigir-se ao seu apartamento.
Percebe ao entrar em casa o quanto está agitado; percebe que está bêbado, e que a cabeça pesa muito menos do que deveria. Abre a geladeira e encontra a primeira prateleira recheada: meio box executivo de comida chinesa, batata frita do Giraffa’s, uma Coca-Cola de 600ml, três pedaços de pizza quatro queijos em um prato de plástico. Com uma mesma colher vai comendo cada um deles, em pé, diante da geladeira, as roupas apertadas debaixo do braço.
Quando termina sente que ancorou, ao menos em parte. Toma um banho quente e veste seu pijama. Senta-se diante da televisão, zapeando os canais até levantar apressado, dez minutos depois, para vomitar.
Se ele fosse um canal de televisão, e pudesse deixar de existir com um clique.
Se ele fosse um personagem de um conto apressadamente escrito em um blog, e pudesse desexistir quando o autor, que certamente não é profissional, resolvesse encerrar o texto.
Se ele tivesse tido um pouco mais de senso e não tivesse quebrado o celular da Aninha.
Se as coisas fossem um pouco mais fáceis… se ele fosse um personagem de um conto do Paulo Coelho ou da Lya Luft.
Mas não é.
Ele dorme na sala, enrolado em um cobertor, deitado no chão (ele não tem sofá), em posição fetal, assistindo Jô Soares. Acorda no dia seguinte e não se sente melhor; liga para o chefe, para a floricultura, para a mãe, para um psiquiatra do convênio e toma um táxi ao hospital, onde é diagnosticado com gripe, gastrite, intoxicação alimentar e “stress”. O médico emite atestado médico indicando quatro dias de repouso absoluto, que ele rasga e joga fora no lixo da recepção do hospital.