Tomo em mãos o mais agudo cinzel

Dulcinéia,

  saiba, antes de mais nada, que escrever-te me dói mais que tudo. Desde o primeiro dia em que fomos felizes juntos, ou ainda antes: desde o primeiro dia em que fui feliz com a perspectiva de um dia sermos felizes juntos soube, como se sabe o azul do mar, que não viveria sem você.

  E no entanto vejo-me cá a redigir-te o ato mais imperdoável, certamente, de toda minha vida: a despeito de mim, Dulcinéia, deixo-te ir.

  Deste-me os dias mais felizes que jamais poderia viver, e sei que sem você terei novas e mais amargas lágrimas a cada casal a passar, a cada sol que se puser no horizonte; e no entanto, resoluto como um homem há de ser quando se encontra nas curvas mais difíceis de sua história, ponho a essa alegria e a essa doce ventura um ponto final.

  Sabes que seguirei só; sabes que para mim jamais haverá outra. E por isso, certamente, perguntas-te a si mesma de onde tirei essa loucura. Pois saiba, Dulcinéia, que a decisão fez-se inevitável, e a razão veio de onde jamais a esperaria: deixo-te, Dulcinéia, porque não posso ser feliz.

  Só de dizer-te isso o coração me dói como se fosse a estoirar, mas sei que te devo explicações.

  Sabes o quanto estimo minha arte; sabes o quanto de mim sacrifico, o quanto pus-me em encrencas por saber que a beleza que saísse de minhas mãos sairia à força, e não por gosto e leveza. Pois percebi – e daria tudo para que não tivesse percebido, mas já não o posso tirá-lo da mente – percebi que enquanto estivesse contigo veria a beleza e a alegria onde estivesse, e como estivesse; e percebi que enquanto visse a beleza na minha vida, jamais poderia virar minhas noites ou arder-me em febres à busca da beleza que ainda não há, à busca de formas que a expressassem a partir da fria pedra.

  Contigo a meu lado, e feliz como estive, olhava a pedra e o cinzel e não via em mim ímpetos ou fulgores que fervessem o sangue, que delirassem na pedra inerte a beleza necessária, mas ausente.

  Para que minha alma persiga a beleza no ofício da arte, minha belíssima Dulcinéia, hei de estar mergulhado em tristeza; mergulhado em tristeza para que a arte esplandeça como o oásis em meio ao deserto, como a praia inesperada aos pés do náufrago à deriva. Estando contigo, Dulcinéia, sento-me à sombra da mais simples árvore, às margens do mais sereno rio, e em uma tarde qualquer estou feliz, e vejo o mundo a brilhar a beleza simples que é o fluir do tempo, e das águas, e da luz.

  Viver de arte, Dulcinéia, é viver à mingua da beleza. Viver de arte é arder por horas em uma oficina fria, envolto em pó e silêncio e solidão, envolto em tristeza e desespero e delírio; viver de arte é estar órfão de um mundo que se afigura tão necessário quanto o ar, e que se há de buscar a despeito do mundo como ele é.

  Preciso estar sem ti, Dulcinéia, porque contigo ao meu lado vejo que à pedra fria não falta nada, e meu cinzel é como o capricho rebuscado da criança que brinca na lama. Contigo ao meu lado enquanto artista fui medíocre, porque enquanto homem medíocre fui feliz.

  Espero que me compreendas, Dulcinéia. O que te comunico não é uma escolha: é um erro, e o erro que faço, não o faço por querer – se pudesse querer outra coisa que não a vida ao teu lado, quereria certamente uma morte rápida e uma cova rasa. Mas a arte que me move não é, certamente, uma escolha, e ao deixar-te não o faço por optar por minha arte. Não; a arte que me move é uma condenação, é um fardo que carrego, uma herança maldita que de ninguém herdei, senão da lua indiferente, do mar gelado, das estrelas distantes.

  Deixo-te, Dulcinéia, para viver só, e triste; deixo-te para ver-me sofrendo e chorando, pois é das dores do desencanto que retiro as cores mais fortes de minha paleta, é no desajuste que afio meu cinzel, e quando estiver sem teu calor e tua companhia estarei completo em minha desgraça. Sacrifico a alegria única e maior que pude ter na vida, para que ao fundo de meus olhos se erija a Musa mais pura, a forma mais perfeita, a inspiração mais arrebatadora.

  Deixo-te, Dulcinéia, porque encontrei em tua companhia o amor mais belo que jamais pude imaginar que no mundo poderia haver; e vejo hoje que não poderia suportar beleza deste tamanho a construir-sefugir de minhas mãos e ganhar meus dias e meu coração e meu lar.

  Porque meus dias passam, Dulcinéia. E meu coração fraqueja, e erra. Porque meu lar é nada senão zinco e sonho, e não resistiria ao menor rumor de desventura sem balançar sobre as próprias bases. Em resumo: porque meu mundo é pobre e fraco demais para conter a beleza verdadeira, e a beleza que erigiste em mim eu sei que é obra para o eterno, obra para o divino.

  Não suportaria ver-nos dia após dia a erodir a plenitude da beleza que construíste em mim, Dulcinéia. E por isso, pelo bem de nós dois, e pelo bem da beleza – da sua beleza – ponho-me em brios e te deixo… te deixo só, com um beijo doce, e a maior saudade que um dia já atravessou esse vale de lágrimas. Eternamente seu,

S.

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