Winnicott, a função-autor

I. DEFINIÇÃO PROVISÓRIA DE FUNÇÃO-AUTOR

            Tiro essa idéia de função-autor de Michel Foucault, como deve estar claro para a maioria: mais especificamente, de seus trabalhos “o que é um autor?” e “a ordem do discurso”. Quem quiser saber em mais detalhes do que se trata, sugiro esses dois breves textos.

            Para nosso trabalho aqui, proponho uma apresentação simples: imaginem um homem. Esse homem escreve, e profere discursos – uma das ocupações dele, enquanto ser social, é falar de coisas. As coisas que esse homem diz serão ouvidas, lidas e comentadas por pessoas, terão consequencias no mundo concreto. Quando falo da função autor, me refiro a essa potência de transformação de que essas pessoas lançam mão. Um professor medíocre não é, por exemplo, uma função autor; uma pessoa que assume uma certa eminência pelas colocações e opiniões, que pode ser usado como argumento de força, assume este papel de autor.

            No caso de Winnicott: foi um homem, viveu na Inglaterra, gostava de Beatles, jantava com amigos… tinha uma vida como pessoa. Desta se destaca a vida dos textos e conceitos e influências aos quais se associa seu nome, Winnicott, mas que dizem respeito não a ele, mas às coisas que ele produziu e ao efeito que seu trabalho tem na malha social.

II. AS PALAVRAS DE WINNICOTT

            Gostaria de comentar aqui a forma como Winnicott redigiu seus textos e elencar possíveis consequências destas escolhas para a função-autor.

            Nos textos ‘técnicos’, que ele leu perante Sociedades Psicanalíticas, nas comunicações em grupos acadêmicos, etc., Winnicott prezava por uma linguagem muito específica: ele se refere a isso como a “sua forma” de comunicar, enfatizando a não-citação de pessoas que possam tê-lo influenciado.

            Grossamente, os textos de Winnicott são: diretos e relativamente curtos; pobres em termos técnicos e conceitos; usam exemplos e linguagem próprios à clínica de crianças, à psicanálise modificada e à pediatria. Além disso, obviamente, seus trabalhos são em inglês.

           Winnicott insistia em que sua comunicação fosse própria: acredito que aí reside o ponto capital de seu estilo. Para que a comunicação fosse própria, ele precisava recusar, nem que fosse provisoriamente, a citação expressa de outros autores que pudessem tê-lo influenciado; para que fosse própria, ele fazia referência, sempre, aos campos de trabalho que conduziam seu dia e sua vida: a clínica com crianças em pediatria e a psicanálise em consultório individual; para que fosse própria, atinha-se à radicalidade da proposição, comunicando o que quisesse em poucos parágrafos e deixando desdobramentos, aplicações, consequências e articulações para momentos futuros ou para outros.

            O ponto central que quero explicitar aqui é que Winnicott fez escolhas em relação à confecção de seus textos e comunicações, e essas escolhas têm consequencias para a apropriação de suas idéias. Essas consequencias não são nem devem ser evitáveis, mas penso ser importante que aqueles que estudam seu trabalho façam o possível para aproveitar ao máximo as possibilidades e riquezas do texto, evitando cair em uma ou outra particularidade e deixar todo o resto de lado.

III. WINNICOTT, O AMBIENTE E A CONCRETUDE DA CENA

            Winnicott é muitas vezes associado à escola das relações objetais em função de seu pertencimento à Sociedade Britânica, sua relação com Klein e seu recurso a conceitos como mãe, a objetos e, em geral, a um “mundo lá fora”.

            Eu discordaria dessa escolha, alegando que a classificação correta, neste caso dos “engavetamentos” em categorias, seria tratá-lo como um autor do “ambiente”; digo isso porque ele não trata tanto dos objetos internos e das projeções objetais etc., mas sim dos processos por meio dos quais o ambiente favorece a criação, no bebê, de uma psique. Assim, seu trabalho não é sobre objetos internos, mas sobre objetos, ponto: objetos lá fora, coisas e pessoas reais, a mãe, o cobertor etc.

            Esta distinção acaba colocando dentro do pensamento de Winnicott esta preocupação com a cena e a concretude – Winnicott estava preocupado com as relações reais da pessoa com seu entorno – preocupação bem exemplificada por sua proposição do placement como recurso terapêutico.

            Talvez seja por isso que Winnicott tenha tido tanta preocupação em se comunicar com o público não-psicanalítico; talvez por isso, também, tenha tido tantas comunicações sobre questões de seu tempo: o muro de Berlim, os preservativos, o aprendizado de Matemática, a loucura, procedimentos violentos no tratamento da loucura, a democracia, lares e abrigos para menores abandonados ou retirados dos pais. Curioso, a meu ver, é que, apesar desta preocupação e da insistência de Winnicott neste aspecto, uma parte significativa dos trabalhos que usam a função-autor Winnicott passem ao largo disso e deixem de levar esse ponto em consideração – neste aspecto, me assusta a ausência quase absoluta de articulações do pensamento winnicottiano com a teoria social, a sociedade e questões sociais de nosso tempo.

            Seja como for, me parece imprescindível que esse tipo de implicações e cruzamentos – do psicanalista/intelectual com a cidade, com seu tempo e com a sociedade – se mantenham vivos e em movimento: antes de mais nada pelos riscos moralistas e autoritários de nossa práticas, mas também pelas questões de nossa sociedade, pela necessidade de implicação, pelo potencial questionador da psicanálise enquanto dispositivo… enfim.

IV. PARADOXO E DESCENTRAMENTO

            Me parece haver dois usos para o termos psicanálise. Um deles se refere a instituições e grupos que se fundam em torno da psicanálise, a empresas que operam a partir de uma certa leitura de Freud ou pós-Freuds, enfim; apresentaria, aí, psicanálise como uma forma dura, um expediente e como um estabelecimento social. Não quero, obviamente, moralizar este ponto.

            Há outra forma de usar o termo; aqui, psicanálise é uma forma de operar sobre o não-dito, o inconsciente (em sua acepção radical) ou, melhor dizendo, sobre a resistência, a negação – a alienação. Desta forma, a psicanálise é um expediente político por excelência, um trabalho de insurreição. Esta segunda acepção do termo psicanálise me parece muito rica e interessante do ponto de vista da política, da teoria e da crítica social e do engajamento social militante.

            Até onde posso ver, o trabalho winnicottiano apresenta grandes contribuições para esta segunda forma de psicanálise. Ressaltaria como grandes apropriações neste sentido: 1. a relação de Winnicott com o paradoxo, explorada, entre outros, por Green e por Figueiredo (no Brasil), e 2. o papel de Winnicott na proposta do “descentramento” da psicanálise proposto por Ricardo Rodulfo, que ressoa, para mim, as tradições psicanalíticas de Japiassu, que toma a psicanálise como diretamente dependente de seu fator crítico e analítico, e Pontalis, que já citei.

            Todo autor é melhor compreendido quando estudado de forma complexa e inserido em seu contexto; no caso de Winnicott, isso é excepcionalmente importante, na medida em que Winnicott procurou um estilo de escrita que é intimamente relacionado com sua pessoa, seu trabalho, sua postura como homem, como cidadão e como pensador. Nesta medida, ele ofereceu um legado muito menos favorável à função-autor, na medida em que usava menos colocações bombásticas e manobras retóricas mirabolantes. Isso parece estar em causa na própria época e lugar, haja vista os trabalhos duros e estilisticamente duvidosos de Bion e Klein, por exemplo. Isto, no entanto, fica por ser estudado futuramente.

W, 2010

Um comentário em “Winnicott, a função-autor

  1. Will , o texo é bem denso e veio depois de ler a Lia e sua Banana . Aqui , vc faz uma consideração encaixando ideias e conceitos por escrito e acho importante sempre vc saber quem o segue nesta linha da psicologia filosofica e nivel de interatividade .
    Digo isso porque montei Facebook e no perfil de uso e utilidades da ferramenta tenho questionado bastante segurança e utilidade de cada ferramenta .
    Parabens

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