As pautas ligadas à formação e transmissão em psicanálise andam aquecidas, ultimamente. No começo desse ano circulou a notícia da aprovação de um curso de “bacharelado em Psicanálise” na Uninter, uma faculdade em Curitiba; essa notícia mobilizou diversas entidades ligadas ao movimento psicanalítico (principalmente aquelas vinculadas ao Movimento Articulação) a organizar um abaixo-assinado de repúdio à proposta, e poucos dias depois uma matéria de Marco Antonio Coutinho Jorge publicada na Folha de São Paulo repudiava com notas fortes a iniciativa. Um professor de filosofia e psicanalista de Recife, Érico Andrade, escreveu um texto de opinião em resposta ao texto de Marco Antonio, publicado na mesma Folha de São Paulo, e com isso o cenário do debate estava montado.
Eu mesmo escrevi um texto que circulou em redes sociais, que vou reproduzir no final deste texto. De lá para cá houve mais debate e, na segunda-feira 31/01, uma coluna da Vera Iaconelli na Folha de São Paulo tratava do mesmo assunto. Como vejo o debate mais abrangente e complexo, optei por uma postagem aqui, para facilitar a visualização a quem se interesse.
Tento, de partida, resumir o ponto: não há curso de graduação em Psicanálise no Brasil, assim como não existe nenhum curso de pós-graduação que ofereça um título de Psicanalista como comprovação de desempenho satisfatório. Isso acontece porque não há regulamentação da profissão de psicanalista no Brasil, de forma que esse tipo de “comprovação” não teria como acontecer. Esse estado de coisas não se deve a atraso administrativo ou inépcia na mobilização da classe psicanalítica – pelo contrário, deve-se a uma posição sustentada reiteradamente pela comunidade. As primeiras tentativas de regulamentação da psicanálise no Brasil datam da época da ditadura, e o fato é que as únicas ocasiões em que vimos a comunidade psicanalítica assumindo uma posição articulada, militante, contundente e pública dizem respeito justamente a essa questão (da regulamentação, digo).
Os motivos para isso, até onde percebo, são diversos e não redutíveis a uma só fonte.
1. Há, por um lado, uma “organização para-legal” da psicanálise em nível internacional – as Associações Psicanalíticas mais fortes não são submetidas formalmente a nenhum órgão governamental ou profissão que as chancele, operando, portanto, de forma autônoma (isso é válido para as instituições lacanianas, evidentemente, mas não só: a imensa maioria, de fato, virtualmente todas funcionam dessa forma); isso vem desde Freud e parece arraigado na cultura psicanalítica historicamente.
2. Paralelamente a isso (e diretamente ligado a isso), há um estado de coisas bem instalado nesse funcionamento, e todas as diversas instituições psicanalíticas estão bem instituídas para operar dessa forma – existe, portanto, um campo de interesses montado a partir dessa dinâmica, que inclui diversas facetas da fenomenologia cotidiana das instituições psicanalíticas.
3. Também existe uma diversidade de modos de conceber, compreender e praticar a psicanálise ao largo dessas diversas instituições, de forma que não parece haver um caminho simples se eventualmente surgisse a ocasião de “oficializar” ou “regulamentar” a psicanálise – a pluralidade do movimento psicanalítico vem de longa data, só faz crescer, e gera um estado de coisas em que não haveria nenhum ponto de consenso sobre o qual pautar o debate acerca da regulamentação.
4. Além disso, existe uma associação entre a instituição psicanalítica na sociedade e sua estrutura conceitual interna, fazendo com que se considere que a “liberdade associativa” vinculada à não regulamentação seja formalmente necessária, posto que ela seria o representante formal-burocrático de uma prática que opera a partir de uma concepção de inconsciente em que as associações são fundamentalmente estranhas à regulamentação e à organização lógica; por extrapolação, refere-se com frequência a essa lógica a ideia de que a “singularidade” que é fundamental no pensamento psicanalítico seja razão para que não seja possível nenhuma forma de parametrização ou regulamentação.
Pois bem, a proposição de um curso de graduação em psicanálise bagunça isso tudo – afinal, ela formaria “psicanalistas”, mas esses psicanalistas não teriam relação a priori com nenhum desses pontos, e não teriam relação com nenhuma das instituições que historicamente se incumbem da tarefa de “transmitir a psicanálise”. Daí encontramos um ponto de conflito, porque a própria concepção de psicanálise estaria sendo disputada: psicanalista é quem circula com reconhecimento e efetividade nas instituições historicamente concentradoras dessa disciplina, ou psicanalista é quem concluiu o curso de graduação da Uninter e conseguiu o diploma? Hoje, essa questão pode parecer retórica, mas um curso online como esse da Uninter deve trazer dezenas de milhares de “bacharéis em psicanálise” para o mercado em um prazo de poucos anos (sem contar os diversos outros cursos que se seguirão, oferecidos por outras Universidades, a depender de como o debate Uninter desenrola), com o que esse debate ganha caldo, drama e urgência.
Minha opinião nesse cenário: o curso é uma má ideia, devemos nos opor a ele, porque ele não deve existir. Isso, digo, porque:
1. não há regulamentação da prática, E qualquer regulamentação conflitaria com um funcionamento social que já integra as atividades que seriam outorgadas a esse profissional (fosse a profissão regulamentada);
2. trata-se de um curso online, sem catalalogação no Conselho Nacional de Saúde e sem integração com os demais cursos na área da saúde, mas que se organiza como a formar profissionais que vão trabalhar no grande campo da clínica (em consultórios, coletivos, serviços de saúde, como ATs etc). Se fosse um curso “complementar” ou de “conhecimentos gerais” ou uma segunda graduação, ele não deveria ser um curso de graduação; e pela forma como é apresentado e divulgado, ele não é um curso de bacharelado única e exclusivamente, mas claramente um curso formando profissionais que vão atuar no campo da saúde, mas sem a devida regulamentação, com perspectiva evidente de comprometimento do funcionamento dos serviços de saúde, públicos e suplementares, no Brasil.
Por esses dois motivos principais, sou contra o curso e espero que sua autorização seja revogada. MAS – e esse ponto é importante – não me agrada a forma como a maior parte dos psicanalistas têm se posicionado nesse contexto. Por que? Porque a maior parte das críticas tem se pautado na reiteração de que a psicanálise se funda na singularidade, o processo não é de formação, mas sim de transmissão e autorização, e que portanto a psicanálise “não tem governo nem nunca terá”. Pessoalmente, acho isso lindo, mas enquanto posicionamento no debate público, acho problemático. De novo: por que? Porque esse posicionamento refuta a oferta de um curso reiterando elementos específicos na transmissão – justo – mas naturalizando e se desincumbindo do debate no que diz respeito a um estado de coisas subjacente à proposição do curso, qual seja: tem muita gente interessada em psicanálise, e que fica presa do lado de fora porque não consegue entrar. Nesse sentido, as instituições psicanalíticas deixam de assumir um compromisso urgente, que seria o de assumir a responsabilidade de oferecer recursos e perspectivas para que aqueles interessades em psicanálise consigam acesso, suporte e apoio em sua busca por entender e, quem sabe, praticar psicanálise. Quando se rechaça o curso reiterando a singularidade, a complexidade, os meandros, os anos de análise etc etc., passa-se a impressão de que psicanálise “é pra quem pode”, e essa postura (desenho pra quem não entendeu) é excludente, exclusivista e, por extrapolação, elitista.
E o que eu proponho? Proponho o que propus: que o curso seja rechaçado e que haja organização para retirar sua autorização de operação, sim – mas que a comunidade psicanalítica busque formas de se aproximas das pessoas interessades na psicanálise, principalmente aquelas que enxergam na psicanálise um recurso para pensar criticamente, pensar o contemporâneo e transformar relações e, quem sabe, a sociedade.
Só que isso não pode continuar funcionando como funcionou nas últimas décadas para os psicanalistas, que é pela oferta de cursos de pós-graduação e cursos livres, em geral oferecidos em espaços prestigiosos e classudos da cidade e da sociedade. Por que não? Porque essa psicanálise high-society não dá conta de um apelo que, justamente, a Uninter endereça – gente normal, gente brasileira, gente que tá por aí na luta e que viu um vídeo interessante sobre psicanálise, ou teve uma aula bacana de psicanálise, ou fez análise e achou bacana, e decidiu que quer estudar isso. Bom, se essa pessoa tem que terminar uma graduação em psicologia ou medicina ou filosofia para depois prestar um processo seletivo intimidador e depois pagar mil e tantos reais por mês, bom, pode-se dizer que a psicanálise está fechando a porta e a janela para o interesse dessa pessoa.
Acredito, então, que a comunidade psicanalítica que rechaça graduações tem que se aproximar das periferias, dos secundaristas, de todas as pessoas que não têm um caminho pavimentado que as leve às portas das instituições consagradas de transmissão da psicanálise.
Mas – e aqui entra a boa provocação de Vera Iaconelli em seu texto da Folha – por que vocês querem se tornar psicanalistas? A pergunta, no fundo, endereça um incômodo mais atual, que seria: por que tem tanta gente querendo estudar e “se formar” psicanalista?
Acho a provocação muito pertinente e sagaz – mas acho que o debate, de novo, diverge em relação à responsabilidade histórica das instituições consolidadas na comunidade psicanalítica. Por que? Porque, a bem da verdade, não é da minha conta porque essa pessoa decidiu que quer aprender, entender, estudar, pensar psicanálise; o que importa é que ela quer, e ela está procurando caminhos para isso. Minha sugestão e minha aposta é que a gente estenda a mão, se organize e diga “honestamente, não sei por que você quer, mas se você quer, venha, que a gente inventa um jeito”.
Existe, nessa minha aposta, uma aposta subliminar, que eu já referi no passado e explicito de novo aqui: acho que devemos abrir as portas para “toda essa gente”, inclusive porque acho que elas vão poder transformar uma cena psicanalítica que já começa a ficar excessivamente branca e velha e rica; acho que “toda essa gente” vai ser mais do que bem vinda, porque acredito que vão poder fazer as perguntas incômodas, usar a linguagem que importa, olhar pros lugares que convocam, e inventar, assim, uma psicanálise pertinente ao nosso Brasil de hoje – ou melhor, ao Brasil que queremos, escondido em algum lugar nas tripas desse Brasil horroroso que é o que hoje habitamos.
Resumo: gosto do “fora Uninter!”, gosto mesmo – mas só se a ele for associado um “cola, povo, psicanálise a gente faz aqui – se é pra somar, é só colar!”; se for assim a postura da comunidade psicanalítica, fico feliz, orgulhoso, corajoso, e engrosso o coro.
Texto do Marco Antonio Coutinho Jorge na Folha (11 de janeiro): https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/01/bacharelado-em-psicanalise-e-aberracao.shtml
Texto de Érico Andrade na mesma Folha (17 de janeiro): https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/01/democratizar-a-psicanalise.shtml
Texto anterior meu em relação a esse mesmo assunto (18 de janeiro): https://web.facebook.com/Will.acfranco/posts/10217250104925137
Texto da Vera Iaconelli na Folha (31 de janeiro): https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2022/01/a-psicanalise-em-questao.shtml
Artigos de Vera Iaconelli e Marco Antonio Coutinho Jorge, a Folha impede ler: “só para assinantes”, o que é uma pena. A psicanálise ainda é muito elitista, concordo. Preconceituosa, também. Agora, bacharelado em psicanálise não faz o menor sentido. Talvez, provavelmente um dos motivos dessa insistencia, seja o alto custo de fazer parte da comunidade, provavelmente o interesse de pessoas que não venham das elites brasileiras e, que não conseguem fazer parte do grupo de psicanalistas. Por outro lado,me parece, posso estar equivocada é claro, que há também questões politico – religiosas envolvidas nessa demanda por , bacharelado em psicanálise. Seu artigo é bem pertinente no contexto atual, com pandemia e tudo! Há muitas questões a serem conversadas, discutidas, reformuladas.
Acho curiosa toda essa manifestação contra a graduação em Psicanálise, pois existem diversos curso livres prometendo formar Psicanalista em 6 meses!! Cursos estes, de propriedade e administrados por psicanalistas! O que parece é que esse movimento de repúdio a graduação e a regulamentação da profissão, está mais ligado ao receio de perderem esse monopólio dos cursinhos que geram muito dinheiro para estes profissionais! Qual a diferença em ter a parte teórica em um graduação bacharelado em 4 anos ou fazer um curso livre de 6 meses com 360 horas? O que dá mais respeito a atividade? Quero compreender essa lógica sem justificativa desses grupos que são contra! Gente é só fazer todo tripé durante o curso de graduação ou depois!! Vai dar mesmo! As pessoas de formam em direto e depois fazem o exame da OAB para serem advogado! Qual o problema do bacharelado e depois ou durante concluir o tripé?
Oi, Valteir! Obrigado pela participação aqui no blog. Então, o problema da comunidade atualmente estabelecida de psicanalistas com esse bacharelado é que ele é uma iniciativa externa à comunidade existente e que “forma” psicanalistas em uma perspectiva e tradição diversa daquela aceita pela comunidade, e faz isso “emitindo certificado” e num curso formal. A questão, aqui, é que um bacharelado (ou qualquer outra formação “formal” em psicanálise) descaracteriza o movimento psicanalítico, ao passar a “entregar” ao “mercado” “psicanalistas” “formados”… entende? Não que essas instituições que oferecem cursos EAD em 6 meses etc etc não tragam problemas, mas esses problemas não confrontam a validade ou consistência da comunidade atualmente existente (configura, isso sim, uma massa de “psicanalistas” mal-formados às margens da comunidade existente); um bacharelado, por sua vez, “regula” a formação de psicanalistas que passam a constituir uma espécie de “comunidade paralela”, de gente que se reconhece psicanalistas porque foi diplomada nesse sentido por uma instituição reconhecida pelo MEC e tudo. O problema, em resumo, é a regulamentação (como eu digo no meu texto, por sinal). Isso posto: concordo com você (como disse no texto) quanto à importância de não perder de vista outras questões que a comunidade psicanalítica atualmente existente muitas vezes desprestigia – como, por exemplo, essa questão dos cursos “ruins” de formação “questionável” que abundam na internet e Brasil adentro. Ou seja, e resumindo: entendo seu incômodo, e concordo com ele, mas acho possível entender o posicionamento da comunidade psicanalítica, e questioná-la também – só não te acompanho, portanto, no tom denunciatório linha “dedo em riste”, que acho pouco produtivo, e na simplificação da questão em torno do dinheiro (não que não seja um fator relevante, mas não acho que é só disso que se trata).
Concordo completamente. Mas vou mais adiante, na minha opinião de leigo, não precisaria de um curso bacharel em psicanálise, acredito que a psicanálise é uma técnica e complementa outras atividades, não faz sentindo uma faculdade inteira de psicanálise só para ter disciplinas que não vão agregar a profissão. Eu acredito que deveria ter curso técnico, ou aceitar o curso de especialização em psicanálise também para ser validado nesse sentido. Concordo no que você disse, no que se refere a fazer o tripé depois ou durante. Teoria é uma coisa e supervisão e análise é outra coisa. Tem que melhorar a qualidade do ensino sim, não tem como valorizar mais um curso livre do que um curso regulamentado, com a fiscalização mais rigorosa que a pessoa foi avaliada corretamente. Sempre vai haver falhas em algumas instituições, mas aceitar apenas curso livre se torna mais duvidosa a qualidade do ensino. Minha opinião, sei que não vai de encontro a todos, por isso é repito que apenas a minha opinião.