Ao longo do ano de 2019 eu contribuí com um site chamado “Constitucionalismo”, também chamado por seu criador (um advogado chamado José Nunes) de “Observatório da democracia”. Recentemente, por conta da necessidade de organizar documentos comprobatórios de minha trajetória, acabei me deparando com o fato de que o site não existe mais, de forma que os textos também tinham sido retirados do ar.
Acredito que eles estejam um tanto anacrônicos, já, mas também acredito que eles refletem um movimento crítico e um momento de nossa história digno de algum registro, de forma que decidi recuperar os artigos que eu publiquei no tal site e publicá-los aqui mesmo, em nosso Errâncias – ao menos, fica o registro.
Salvo a anotação das datas de publicação originais, não fiz nenhuma alteração nos textos que enviei ao “Constitucionalismo”.
will franco, 21 de fevereiro de 2022
Corrupção sistêmica e o futuro da democracia brasileira – 29 de janeiro de 2019
É bastante oportuno que tenha sido criado este Observatório da Democracia neste momento de nossa história [janeiro de 2019, no caso] – afinal, a eleição de Jair Bolsonaro disparou o sentimento de que nossa democracia se encontra em risco, se é que ainda se trata de uma democracia. É importante, neste sentido, que possamos contar com um fórum como este, onde poderemos avaliar o estado desta questão e sua evolução conforme o atual governo demonstra como efetivamente atuará.
Há três ângulos básicos para avaliar o estado atual de nosso sistema social quanto a tratar-se ou não de uma democracia:
1. já não se trata de uma democracia desde o golpe político-civil de 2016 – o processo de impeachment da Dilma teria determinado a ruptura do Brasil com o regime democrático, ao forçar a saída de uma presidente democraticamente eleita;
2. já não se trata de uma democracia desde a eleição de Jair Bolsonaro – seja porque 2ª. ele fraudou as eleições através do uso maciço de fake news e desinformação sistemática, seja porque 2b. ele declara ser avesso e contrário a princípios considerados fundamentais para uma democracia (como o respeito à diversidade populacional soberanamente constituída, respeito à pluralidade política, respeito aos direitos fundamentais e aos termos pétreos da Constituição);
3. trata-se ainda de uma democracia, considerando que Bolsonaro foi eleito de forma democrática e nenhuma decisão efetivamente tomada por ele nestes primeiros dias de governo configura ruptura com a democracia enquanto sistema.
Apesar de ter sido eu a criar as alternativas, preciso confessar que não me sinto contemplado pelas alternativas. Isso acontece porque entendo que as alternativas pressupõem que a disputa pela democracia é o ponto crucial em jogo ao avaliarmos “quando” e “se” a política brasileira saiu dos trilhos, e eu, a bem da verdade, acredito que devemos diminuir nossas expectativas em relação à democracia. Isso não significa, evidentemente, que sou contra a democracia – significa apenas que entendo que democracia garante muito menos do que gostaríamos que garantisse; é um bom começo, mas não é nada além disso. Parto da alternativa 3, então, mas vou tentar qualificar minha posição.
Acredito que haja certa confusão entre a democracia enquanto modelo ideal e a democracia enquanto sistema efetivamente vigente; é uma confusão difícil de apontar e corrigir, porque ela é muito sutil – na medida em que a diferença não é conceitual ou filosoficamente precisa, e portanto implica em grande quantidade de ruído para nossa lógica usual.
A lógica básica, no entanto, é simples: uma coisa é a democracia enquanto modelo, prevendo que o povo toma as decisões – esse modelo é fantástico, é lindo divino maravilhoso; outra coisa é uma sociedade, concreta e específica, em que cidadãos representantes são eleitos pelo povo através de processo eleitoral devidamente regulamentado e inspecionado, garantindo que a população tenha tido condição adequada de efetivar seu voto e, por conseguinte, delegar seu poder representativo. Obviamente essa divisão é arbitrária: o modelo é só um modelo, não existe, toda democracia se deu, dá e dará em uma sociedade específica e concreta. Então qual a diferença? A diferença é que há uma miríade de fatores interferindo no processo quando de sua efetivação em uma sociedade concreta e específica, coisas como classes detentoras de poder desproporcional, distorções ideológicas e manipulações deliberadas na circulação de informação, abuso de cargos de poder para sustentação de privilégios indevidos; essas coisas fazem democracias, ainda que sejam democracias, terem cara, gosto e cheiro característico (meio azedo, meio podre).
O que isso significa? Que não podemos esperar demais do fato de nosso sistema ser uma democracia. O Brasil será socialmente organizando como uma democracia enquanto houver eleições regulamentadas, enquanto a Constituição for respeitada, enquanto não houver restrição arbitrária às liberdades civis, enquanto não houver estado de exceção. Isso tudo, infelizmente, não garante grande coisa: é possível haver um governo democrático com presença maciça de membros das Forças Armadas em cargos estratégicos e com posições sociais, econômicas, políticas e jurídicas francamente reacionárias. Contestar um governo desse tipo dizendo que ele não é democrático é distorcer o que democracia significa, como forma desesperada de salvaguardar nossas concepções semi-iluministas de progresso inevitável sob a bandeira da democracia.
Evidentemente isso não significa que não contestaremos esse governo – vamos contestá-lo! Contestá-lo porque ele é autoritário, porque ele é corrupto, porque ele é reacionário, porque ele é social e ambientalmente irresponsável; vamos contestá-lo porque ele é inaceitável. Mas até agora ele não rompeu com a democracia – pelo menos não mais do que o impeachment de Dilma e a prisão de Lula o fizeram.
Mas e o impeachment? O impeachment rompeu com a democracia? Eu entendo que não. Não porque eu ache que o impeachment foi justo e/ou correto, porque não acho que ele tenha sido; acho, isso sim, que o impeachment de Dilma foi justamente a demonstração cabal de que o sistema político brasileiro, ainda que formalmente democrático, é profundamente injusto. E a prisão de Lula, rompeu com a democracia? Mesma coisa: entendo que não, mas entendo que o processo todo foi uma demonstração clara de quão enviesado, manipulado e potencialmente injusto o sistema em geral é. Aqui entra em cena um nó crucial na questão: acho que as limitações para o emprego da noção de democracia enquanto analisador da conjuntura nacional estão diretamente ligadas às limitações no emprego de uma outra noção, igualmente em voga contemporaneamente – a noção de corrupção.
O problema com o emprego corrente de “corrupção” enquanto entidade analítica para pensar o sistema brasileiro é que, na vulgata (no Face, nas conversas de bar etc. – ou seja, onde a “opinião popular” que funda e justifica a democracia se consolida), na vulgata corrupção é algo que se passa entre corruptor e corrompido, como um ato pontual, uma negociação espontânea entre dois agentes livres e anônimos. Esse tipo de entendimento fica evidente quando se fala em “acabar com a corrupção” ou se esbraveja “fora todos os corruptos”. O problema aqui é muito simples: não é assim que funciona: corruptores e corrompidos no sistema político brasileiro fazem parte de uma grande rede de interações – uma imensa, chamada Brasil, e uma um pouco menor, que é a costura de interesses entre a oligarquia e setores do mercado na sustentação de uma dinâmica extrativista predatória estabelecida desde os idos de 1500.
Para arriscar uma metáfora de valor apenas relativo: se fôssemos “acabar com a corrupção no Brasil”, precisaríamos formatar o disco rígido (ideia impraticável, em qualquer país ou circunstância); “acabar com a corrupção” é uma bravata vazia.
Pode-se combater a corrupção, claro: instituindo mecanismos independentes e bem estruturados de governança, controladoria e fiscalização, agilizando e garantindo lisura e rigor na tramitação jurídica dos delitos apurados; mas “acabar com a corrupção”, como quem acaba com caspa no cabelo ou gordura no fogão, isso é enganação.
Entendo, nesse sentido, que o governo Bolsonaro assume dizendo que pretende acabar com a corrupção, enquanto na verdade encampa o projeto de restabelecer os mecanismos usuais de corrupção sistêmica (no processo de restabelecimento vai silenciar o escândalo em torno da corrupção, o que trará a percepção de que a corrupção diminuiu). Continuarão havendo propinodutos de todas as formas, cores e tamanhos, mas eles voltarão a ser geridos e fiscalizados por cidadãos de bem (homens, brancos, ricos, conservadores, os velhos e bons Sarneys, Malufs e quetais de nossa pátria amada). Isso é uma ruptura com a democracia? Não: é apenas, para emprestar a feliz expressão de Romero Jucá, a instalação bem-sucedida de “um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”.
Gostaria de acreditar que isso é uma afronta à democracia, que é patentemente anti-democrático, mas infelizmente não consigo. Isso é obviamente estranho ao ideal de democracia – mas se formos tomar o ideal como régua, todas as democracias foram anti-democráticas, desde a Atenas clássica até hoje.
Nossa tarefa, nesse Observatório e em qualquer fórum comprometido com um Brasil mais justo, menos desigual, menos moralista, mais inclusivo e mais responsável social e ambientalmente, nossa tarefa em qualquer espaço desses não será propriamente avaliar se estamos ou não em uma democracia. Não: nossa tarefa será avaliar quão bem estamos nos organizando para combater as injustiças, os retrocessos e os autoritarismos, e quão bem estamos nos organizando para compor um projeto progressista viável e efetivo para o futuro.
Existe, evidentemente, o risco de que haja, sim, ruptura democrática; esse risco está posto, é palpável e real, e se acontecer será um problema imenso, gravíssimo. Mas a situação atual já é assustadoramente grave e não envolve uma ruptura com a democracia – e provavelmente não será necessário romper com a democracia para promover retrocessos inaceitáveis.
4 dicas para não ser um alienado
30 de março de 2019
As primeiras semanas de governo Bolsonaro têm sido intensas. Dentro da bolha por onde eu circulo, o clima é de revolta, estupefação e risos nervosos; não parece haver consenso em parte alguma a respeito do que está se passando, mas a ênfase nos entendimentos críticos oscila entre diversionismo e amadorismo, submissão olavista, militarista e/ou paramilitarista, conservadorismo e autoritarismo, retrocesso reacionário e avanço neoliberal, entre desastre despreparado e firehosing pós-verdade.
Um olhar mais detido sobre as notícias indica que a leitura mais precisa provavelmente concilia esses fatores todos num sistema complexo – mas não acho que algum de nós vá poder articular uma compreensão crítica desse tipo tão cedo sem recair na teoria da conspiração. O que proponho nesse texto, então, é algo bem mais simples e circunscrito: gostaria de compartilhar com o leitor posicionamentos possíveis para minimizar o efeito dispersivo que a torrente de notícias impactantes traz, pensando que com isso será possível construir um engajamento mais claro e (potencialmente) mais contundente e efetivo.
Por que acho que isso é pertinente? Explico: a maioria das pessoas com quem tenho interagido (e a maioria dos leitores que imagino para esse texto) têm algumas características em comum: um posicionamento alinhado à esquerda, sem inserção consistente em grupo político organizado, em busca de fontes de informação sólida e da construção de um entendimento crítico abrangente; um ponto que parece crítico para atingir esse propósito é que as fontes de informação passaram a ser muito evidentemente marcadas por seus vieses, e a fonte privilegiada de acesso à informação a que as pessoas têm recorrido passaram a ser muito evidentemente marcadas pelas filter bubbles (bolhas de acesso a dados construídas por algoritmos). O que quero dizer com isso? A pessoa não concorda com o bolsonarismo e o governo Bolsonaro, e procura se manter informada, mas percebe que o jornal na televisão é enviesado; as notícias que chegam a ela via Facebook, Twitter e Instagram são enviesadas; os sites de notícia são enviesados. Percebe, enfim, que quando vai tentar se informar tudo que encontra são denúncias veiculadas de forma agressiva por pessoas que pensam como ela, e isso vai tornando ela mais irritadiça e descrente, desejando a despeito de si mesma virar as costas para tudo isso.
Resultado? Muita gente já desistiu de se informar: em tempos de pós-verdade e cultura do ódio, a alienação voluntária vai parecendo uma saída honrosa. Acontece que isso é um problema imenso para o funcionamento de nossa (vamos chamar de) democracia. Afinal, a democracia implica em um regime onde o poder emana do povo, tendo nas autoridades seus representantes por delegação; ora, se os representantes não nos representam, se o governo não nos contempla ou satisfaz, se tudo que vemos é indignação inútil e nossa inclinação é virar as costas e cuidar de nossas vidas individuais, de onde está emanando o poder? Certamente não é do povo.
E o que nós podemos fazer? Tenho alguma indicações nesse sentido, e esse é o ponto principal do que tenho a dizer aqui. Se você não consegue entender o que está acontecendo, não sabe como fazer para se informar nem muito menos como se engajar para se opor àquilo que te desagrada, o que você pode fazer?
1. Entenda seu lugar em nossa sociedade – o Brasil é uma sociedade complexa e qualquer tipologia demográfica tem limitações, mas é importante evitar se alienar ou se iludir a respeito de seu lugar na sociedade. Tomo meu caso como exemplo: tenho plena consciência de que, para praticamente todos os parâmetros relevantes, eu sou mais parte do problema que da solução: sou branco, homem, cis, hétero, nascido, criado e pertencente à classe média alta; não tenho formação política, engajando-me no debate enquanto diletante auto-didata esclarecido; alinho-me basicamente nos termos da esquerda universitária social-democrata soft; nada disso depõe a meu favor. Não digo isso por sanha auto-acusatória nem nada do gênero: digo isso porque é importante saber de onde parto, se quiser me engajar de forma que não seja hipócrita e/ou cínica e/ou alienada – perceber essas características de minha inserção de base me ajuda a evitar fazer o que a maioria das pessoas “como eu” têm feito, me ajuda a tentar ser eficaz em meus posicionamentos em termos daquilo em que acredito. Lançar-se em discursos e bravatas sem pensar criticamente sobre seu lugar em nossa sociedade é garantia de atuar a partir de uma base alienada.
2. Organize e, se quiser e puder, aprimore sua base analítica – a maioria de nós não é especialista em política, não é profissionalmente amparado para compreender o que está se passando; e nenhum de nós é obrigado a se profissionalizar para tomar parte em debates. Dentro das características de nossa inserção, limites e disponibilidade, no entanto, é importante qualificar ao máximo nossa posição. Exemplo: eu não sou economista, nem administrador público e, portanto, não tenho competência profissional para avaliar o estado da Previdência brasileira; mas isso não me condena a comprar os discursos como eles me chegam. Assim, sempre que recebo uma notícia, tento ser o mais crítico possível com aquilo, tento avaliar quão embasadas estão as afirmações, quão claro e esclarecedor é o tratamento do assunto; se por algum motivo me parece que uma ou outra afirmação é rasa ou performática (afirma algo sem dizer de onde tirou aquilo), não a repito sem checar sua pertinência e precisão. Isso não quer dizer que ela é falsa: só quer dizer que não devo acreditar nela enquanto fato. Pensando assim, evidentemente, perceberemos que somos muito, muito ignorantes – é difícil lidar com isso, mas é importante. Eventualmente teremos condição de pesquisar e aprofundar um assunto, e nesse ponto estaremos felizes com nossa capacidade de entendimento – e essa conquista é valiosa e imprescindível. E, para além disso, deixaremos de ser matracas repetindo acriticamente palavras de ordem e bordões vazios – o que será uma vitória para nós, para todos à nossa volta e, quem sabe, para o fortalecimento de nossa corrente oposicionista tão combalida e perdida em falas vazias e disputas de castelos de cartas ultimamente. Retomando meus exemplos pessoais: não pude estudar muito sobre a Previdências, mas acabei estudando um pouco sobre o sistema legislativo brasileiro, e isso tem me sido muito útil para entender melhor as notícias (estudei usando um portal de educação cidadã vinculado ao Senado – os cursos são EAD e gratuitos – também são relativamente fracos, mas são melhor que nada); ainda não tenho posição formada acerca de a Previdência “estar ou não quebrada”, mas já não caio nas bravatas mais óbvias nesse campo.
3. Situe-se em meio à disputa de narrativas – a imensa maioria das pessoas hoje se informa através da internet; os recursos principais são Whatsapp, redes sociais e, de forma muito menos frequente, através de portais de notícias. Essa forma de obter informações é ruim, pura e simplesmente: promove alienação, atrapalha mais que ajuda; mas não se informar em absoluto seria pior, e sabemos que não retomaremos a mídia impressa como forma de base (que não era grande coisa pra começo de conversa). A questão de um milhão de dólares, então, é “como melhorar o uso dessas ferramentas como fonte de informação?”. Penso que: 3.1. descarte tudo que lhe chega via Whatsapp (ou, se ficar muito intrigado, busque pela notícia via Google e cheque a consistência da notícia – mas, já adianto, é um trabalho de pesquisa difícil, nível TCC, no mínimo); 3.2. não se permita pensar que entendeu alguma coisa porque leu a chamada de uma matéria: chamadas manipulam, o mínimo necessário para entender uma notícia é ler o texto com atenção; 3.3. perceba de onde vêm suas fontes e fique constrangido a fazer algo a respeito se perceber que todas elas têm a mesma “marca d’água” ideológica: isso significa que você não está se informando, está comprando um discurso pré-formatado. Ou seja: se você se informa via basicamente a partir de Diário do Centro do Mundo, Jornal 247, Intercept, Fórum e Carta Capital, o que você tem não é notícia: é uma plataforma ideológica, diametralmente oposta a quem se “informa” lendo República de Curitiba e O Antagonista; Por fim, 3.4. construa uma base crítica e ponderada de acesso a informação: procure compor suas formas de acesso à informação em meio à miríade de coletivos, grupos, canais e ventures produzindo conteúdo sobre política e sociedade. Tudo que você tem que fazer para isso é personalizar seus feeds e buscar compor o que lhe chega considerando as formas como consome conteúdo – seja via sites, redes sociais, podcasts, rádios, seja como for, é possível equilibrar suas formas de acesso à informação. A ideia, evidentemente, não é compor um “zoológico midiático” em que você leria Carta Capital e O Antagonista e tweets de Bolsonaro e do Boulos misturados – a ideia é você articular análises de comentaristas com os quais se identifica, fontes de notícias alinhadas a seu interesse e ideologia, fontes de notícia comprometidas com o jornalismo “clean” (os melhores exemplos nessa linha são os portais Nexo e Piauí e o coletivo A Ponte) e fontes de notícia em tempo real (como Folha, Globo, Estado, BBC, El País etc). O que eu fiz nesse contexto? Deixei de buscar “informações” no Facebook; passei a ler diariamente o Nexo; acompanho no YouTube os canais da BBC, do Intercept e do GGN; ouço os podcasts do Foro de Teresina, Durma Com Essa e Petit Journal; acesso diariamente as páginas da Globo e, eventualmente (em nome da etnografia) R7 e Folha de São Paulo; (tentei Twitter, mas não achei tão bom quanto dizem). Muita coisa me escapa, certamente, mas integrei essas mídias com facilidade em meu dia-a-dia e sinto que consigo acompanhar melhor o desenrolar dos acontecimentos e a concatenação das notícias em um panorama crítico mais ou menos abrangente.
4. Descubra o que te é possível (para além da inércia) – sendo honestos, sabemos que a maioria de nós não vai se filiar a nenhum grupo, coletivo ou partido para fazer oposição da forma clássica; estamos inconformados, achamos inaceitável e tudo o mais, mas não vamos mudar radicalmente nossas vidas para fazer a diferença. Se você pessoalmente vai fazer isso, acho ótimo e dou todo o apoio – mas aposto dois reais que a maioria dos que lêem esse texto não vão, e acho urgente pensarmos nos que elas (nós) podem(os) fazer. Estou certo de que, mesmo fora do engajamento de alta intensidade, engajamento político é possível. Alguns de nós conseguirão agir de forma efetiva nos campos em que atuam – no meio psicanalítico, por exemplo, há muito trabalho de incidência política direta ou indireta sendo feito (tenho feito o que posso, nos meus termos, nesse sentido). Alguns de nós agirão de forma efetiva nas redes por onde circulam, sustentando discussões úteis e pautando pontos estratégicos em suas redes e bolhas (o truque aqui é não cair nos discursos de ódio e não ser um postador de textão irrelevante – mas há caminho nesse sentido). Alguns participarão de manifestações e assembleias; alguns farão oposição sistemática em seus grupos de família no Whatsapp e aos domingos; alguns frequentarão grupos progressistas; alguns contribuirão financeiramente com grupos internacionais de vigilância e defesa dos direitos humanos. O ponto principal aqui é escapar à alienação voluntária: muitos de nós têm se deixado acomodar em meio a seus posts e comentários reclamentos, precisamos urgentemente mudar essa tendência.
Essas coisas não vão evitar que você se aliene – mas provavelmente vão tornar você um pouco menos manipulável, e um pouco mais bem situado para se engajar como possa.
Um governo efetivamente autoritário e anti-democrático
3 de agosto de 2019
Em janeiro deste ano, ainda nos primeiros dias após a eleição de Bolsonaro, escrevi alguns textos fazendo ressalvas às tantas declarações que afirmavam que a eleição representava o fim da democracia, a volta da ditadura e por aí vai. Meu ponto à época era que simplesmente não sabíamos como as coisas ocorreriam, e que a eleição, em si mesma, não apresentava evidência significativa de fraude ao processo eleitoral ou ruptura com seu rito. Assim teríamos, até prova em contrário, uma eleição democrática e um governo democraticamente eleito (o candidato eleito tinha, sim, um discurso autoritário, mas isso não significa imediatamente que o governo seria autoritário, essa era a ponderação).
Passados seis meses de governo sinto que há suficiente informação para dizer que há, sim, uma ameaça à democracia no governo Bolsonaro. Veja essa ameaça manifesta em uma série de fatores: recurso sistemático a campanhas de desinformação; desmonte de aparelhos, instituições e sistemas de governança e controle social; apoio retórico (hipócrita, mas eficiente e consistente) à violência policial e à opressão; “normalização” dos mesmos velhos sistemas de corrupção, gangrenando mecanismos de fiscalização, apuração e julgamento e restabelecendo redes de benefício e privilégio; manipulação cínica do aparato de Estado em benefício de interesses defendidos pelo governo; promoção de um discurso opaco e recusa do direito à opinião e à crítica.
É importante notar que a maior parte desses elementos não é novidade no Brasil, mas a forma como vêm sendo dispostos é particularmente agressiva e disruptiva, e o desrespeito ao Estado por parte do governo em exercício que eles representam é inaceitável. Explico: é evidente que todo governante tenta implantar a plataforma que ele representa (plataforma que ele manifesta em sua campanha, mas também que ele representa através da rede de alianças que o sustenta e do enraizamento ideológico, corporativo e partidário que o situa na trama política), isso é próprio do regime representativo. Mas é parte crucial do Estado democrático que essas iniciativas tenham de se compor com o lastro legislativo e com a vontade dos atores político-sociais decisivos – isso é o que faz com que o Estado seja maior que o governo. No caso do governo Bolsonaro, no entanto, toda forma de composição tem sido recusada sob a pecha de “velha política”, e esse tipo de posicionamento compõe com o pendor autoritário que o governo vem crescentemente assumindo. Que a bravata da “nova política” seja absolutamente vazia, que a “velha política” siga sendo acionada pelo governo regularmente, nada disso importa: o fato é que o governo assume uma posição deliberadamente contrária à composição de forças que é, no fim das contas, o lastro da democracia no Brasil. Assim, conforme se opõe ao lastro institucional, legislativo, político e social estabelecido, Bolsonaro deixa claro que governa de forma autoritária.
O posicionamento autoritário do governo, por sua vez, reposiciona o estatuto do governo no contexto da experiência democrática brasileira. Isso porque, a princípio, Bolsonaro era eleito como governante de todos, evidentemente, mas como representante eleito de interesses “conservadores nos costumes e liberais na economia”, lavajatistas, bolsonaristas e antipetistas. Havia um clamor autoritarista entre os eleitores, mas não se poderia pressupor que ele seria decisivo ou que ele viria a ser encarnado pelo governo.
Isso tudo quer dizer que, num primeiro momento, a eleição de Bolsonaro representava acima de tudo uma mudança brusca em termos de “voz das urnas”, e consolidava o movimento da política brasileira em direção a uma hegemonia da direita que já se anunciava desde as eleições legislativas de 2012. O próprio Bolsonaro encampava um discurso autoritarista, evidentemente, mas isso não significava a priori que seu governo era autoritário – nesse sentido sigo com a mesma convicção que tinha em janeiro: dizer em janeiro que a eleição de Bolsonaro representava o fim da democracia e a ascensão do autoritarismo ao poder era afobado e equivocado.
Hoje, em vista de como o governo se compôs e de como ele vem efetivamente agindo, esse juízo me parece justo e preciso: o governo Bolsonaro é, sim, autoritário, promove, sim, violências, injustiças e desigualdades e representa, sim, uma ruptura com a experiência democrática da breve Terceira República brasileira.
Parece-me improvável, hoje, que esse autoritarismo escale a ponto da declaração de estado de emergência ou na suspensão de elementos estruturantes do aparato político brasileiro; o mais provável parece ser a manutenção de um governo que opera na lógica do sequestro de poder, manipulando a lógica da crise permanente e da auto-crise, lançando mão de sabotagens, desmontagens e sucateamentos, destruindo o aparelho de Estado para “livrar-se da máquina”. Ou seja: o governo Bolsonaro age, enquanto governo, destruindo o Estado, com o intuito de “melhor” governar (o que significa, evidentemente, governar como quiser, sem composição, negociação ou oposição).
Isso, então, parece claro: o governo Bolsonaro está se organizando como um governo autoritário. Isso, e as tantas pessoas retornando à pobreza e à miséria, voltando a passar fome, as tantas pessoas sendo mortas e submetidas a opressão e humilhação, os milhões de sonhos e projetos de cidadania e dignidade destruídos, o meio ambiente sendo destruído em escala recorde, todas essas faces da catástrofe também se desenham claramente.
*
Considero, pessoalmente, que textos são gestos, e por isso tenho por compromisso propor textos que incitem afetos ativos e transformadores, suscitem reflexão crítica e engajamento. Em vista disso fico profundamente insatisfeito com este, que aponta para uma situação crítica sem apontar para formas de se engajar criticamente contra essa crise – torna-la nossa, transformá-la. Apesar de meu descontentamento, no entanto, esse é o estado de coisa que enxergo: nenhuma das “crises” atuais do governo parece, efetivamente, crítica, e nenhuma das “alternativas” parece, efetivamente, alternativa viável. Estendo meus parabéns a Glenn Greenwald e ao Intercept-BR pela coragem e dedicação, desejo sorte a Haddad e Ciro em seus movimentos para galvanizar uma oposição contundente, espero que algo improvável aconteça para que Lula seja contemplado com o insólito direito a um julgamento justo – nenhuma dessas frentes, no entanto, parece capaz de fazer alguma diferença efetiva (e é ridículo ter que lembrar que centro não faz oposição, tampouco a mídia tradicional). Isso significa que nós, até onde posso ver, ainda não estamos à altura da tarefa de fazer oposição efetiva ao governo Bolsonaro e a tudo que ele representa.