da queda

Este texto faz parte de uma ciranda literária com a Day Rodrigues, do blog Totens íntimos
Para acompanhar essa narrativa desde o começo siga esses links aqui, ó:
Além disso, se quiser acompanhar melhor o passinho de intertextualidade poética ao fim do conto (sobre a flor e o asfalto), leia A flor e a náusea, do Drummond.
Fábio pôde levantar-se – melhor seria se não tivesse podido, já que levantou-se manco, mal sustentado, feio de ver e fraco nas pernas; de alguma maneira imaginava que assim era ele, ele mesmo e de verdade, como se a queda tivesse sido na verdade uma volta a si. Nasceu assim,  afinal, feio de ver e fraco nas pernas; mas foi sendo puxado, treinado e guiado, um tanto a despeito de si, e foi-se descobrindo indolente, queixoso, acomodado a subir de elevador, a comer papinha se não quisesse mastigar, a fazer reforço se fosse mal na escola, a passar empurrado se não tivesse nota; foi-se descobrindo levantado a despeito de si, empurrado pra cima e rumo ao topo, subindo só porque debaixo dele o chão empurra pra cima – ou melhor, não o chão, o chão não: um bocado de gente, debaixo dele um bocado de gente, gente que ele preguiçosamente pisava, gente que diligentemente o empurrava pra cima, e assim pra cima ele ia.
O apartamento, lá tão longe, lá no trigésimo e cacetada, fora presente de sua mãe quando se formou na faculdade e passou no programa de trainee – “aí, filhão, pra você focar na sua carreira e não se preocupar com aluguel”; fantástico. Passados uns tantos anos é isso mesmo, missão mais que cumprida: não se preocupa com aluguel, não se preocupa com dinheiro, não se preocupa com a carreira, já não sabe dizer com que se preocupa.
Fora a coluna – a coluna preocupa. Tomou um capote feio subindo a escadaria de incêndio, fugindo da velha que oferecia chá como se fosse uma avó desempregada pelos netos, fugia da velha como quem foge de si mesmo, e se bobear é de si mesmo que fugia, no fim das contas – taí uma missão fracassada. Ao menos – prêmio de consolação – arranjou uma preocupação terrena: a coluna. Será que fudeu a coluna na queda? Possível.
A queda. Tudo começou com a queda: a queda da menina maluca do trigésimo e tantos, caiu na contramão, atrapalhando o tráfego, atrapalhando o Fábio, atrapalhando tudo, menina egoísta da porra. A queda da menina fez a queda do Fábio, de alguma forma – ou melhor, concretizou a queda do Fábio, caído talvez já há algum tempo, caído em meio às 51 Mix terríveis que ele toma por preguiça de descolar uma caipirinha decente. Caído em desgraça por ter corrido atrás da Alê, Alê que ele tinha certeza que iria embora, mas cuja falta ele não imaginou que sentiria.
Alê. Alê caiu em algum lugar nele que ele não conhecia, espatifou algo dele que ele não sabia que poderia perder, e ele perdeu-se de si como não imaginou que poderia – já que nunca imaginou que tivesse muito o que perder. Não sabe o que tinha a perder, que descobriu que poderia perder e perdeu quando a fuga da Alê destruiu algum asfalto que ele dava por inquebrável. Pode uma menina cair do trigésimo andar no asfalto e quebrar o asfalto? Abrir-se-vos-á, ela disse um dia, toda poeta, e ele tirou o maior sarro da cara dela; “engoliu um dicionário? Quer que dê uns tapas nas suas costas pra ver se passa?” e tal. Era só brincadeira, tava tirando uma com a cara dela, mas não, claro que não: ela ficou puta, fez o maior discurso, machismo e o caralho; se ele morasse na cabeça dele (e de alguma forma ela mora) emendaria ainda outra briga sobre ele chamar ela de “puta”.
Ele não sabe mais pensar sem ela. A mina caiu do trigésimo quinto andar e quem quebrou foi ele – ele, o asfalto.
Chegava, enfim, ao seu apartamento – depois de inúmeros lances de escada teve a ideia óbvia de sair da escadaria e chamar o elevador (quando já faltavam só três andares pra chegar – a ideia óbvia na hora retardada). Assim que entrou lembrou que saiu justamente porque não tinha nada pra aliviar a dor – estava sem Tylenol, sem AA, sem Doril, sem 51 Mix, sem veneno de rato, não tinha mais nada: só a porra do Twix que comprou  e que largou pela metade no bolso. Jogou-se no sofá, “filho da puta!”: caiu em cima do controle remoto da tevê e do celular, que estava ali carregando, já tinha carregado,
Já tinha carregado! Ligou e ficou ali, aflito, esperando ligar, assistindo a dancinha estúpida do logotipo da Apple, esperando conectar, esperando abrir o navegador, sem entender por que abriu o navegador, abrindo a lista de contatos, ligando pra Alê.
Alê. Alê sempre ali, primeiro contato da lista, sempre ali, atenta, Alê sempre ali com ele. Atende, Alê. Atende, Alê.
Atende, Alê!
Nada.
Ele não tem nada. Caiu a menina, estraçalhou o asfalto, parou o trânsito, confundiu a porra toda, e agora ele não tem nada, só esse troço estranho no peito. “Angústia”, dizia a analista, “esse ‘troço no peito’ é angústia”.
“Angústia”. Fábio saboreia a palavra em seu pensamento, testa como quem tenta ver se encaixa. “Angústia meu ovo”, pensa enfim, “angústia é o caralho”. O que é isso? “Sabe o que é isso, dona Alice? Isso é uma flor. Uma flor feia, escrota. As pétalas não se abrem, a cor não se vê, o nome não se sabe – mas é uma flor”.
Uma flor rompeu o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Fábio se esparrama no sofá, curte a dor estralada nas costas e aperta o redial – chama a Alê, Alê que não atende, sente o cheiro de nojo e tédio em seu apartamento, ouve as ambulâncias que furam o trânsito e sorri: “que vida maluca, mano! Que vida maluca do caralho!”.
Se a Alê estivesse ali ia achar graça – de alguma maneira, apesar do nojo, apesar do tédio e apesar do ódio, ela está.

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