Texto participante da ciranda em parceria com Dayane Rodrigues: http://palavrasbambas.blogspot.com
A fumaça do cigarro dança à sua frente e ela não vê.
Seu olhar pende para o lado, contemplando os carros que passam. Os carros em suas múltiplas cores, as janelas abertas e as fechadas.
No notebook aberto à sua frente o logotipo da Microsoft vagalumeia, aparecendo de quando em vez aqui e ali, e ela não vê.
– …moça.
– Moça.
– Moça!
Ela se volta de repente, assustada, para o garoto ao seu lado.
– A senhora gostaria de comprar por apenas 7 reais esses lindos panos de prato feitos a mão pela minha mãezinha para ajudar a comprar comida para a minha casa?
“Hum, deixa eu ver”, ela diz antes de perceber que o cigarro ainda pende entre seus dedos; esmaga-o no cinzeiro e pega o pano de prato, bate-o para que se estique. Peras verdes, cachos triangulares de uvas verdes e maçãs verdes se alternam sobre o fundo branco, mas ela não vê.
– Muito obrigado por sua atenção senhora e um bom dia e que Deus a abençoe.
Ela veste seus óculos escuros, suspira enquanto olha o relógio. Tira o notebook do modo de espera e contempla a tela do Word; aos dizeres em Caps Lock “Coluna da Adriana – mensagens de força” segue a tela em branco, o mostrador piscando indolente o branco e o preto, o branco e o preto.
Tira os óculos escuros, guarda-os na bolsa, volta seu olhar ao longe. Para além dos carros e dos prédios devem haver inúmeras coisas magníficas, fatos da natureza e fatos do mundo dos homens e fatos de Deus para inspirá-la, mas ela não vê.
Volta-se para o café em um longo sinal negativo com a cabeça que vai pendendo aos poucos para a direita, até cair sobre a tela do computador, ponto final da longa negativa descendente.
Sua atenção é então atraída pela mesa adiante da sua. Uma garota, em seus 25, talvez 30 anos, morena, desentende-se com o garçom; sob a mesa, as pernas desentendem-se com a bolsa de tricô.
A garota logo se vê livre do garçom; a bolsa dá mais trabalho. O olhar da menina cruza o olhar dela então, só de passagem, só por um segundo.
E ela vê.
Ela vê a desolação da chama consumada; vê toda uma paixão ardendo ali de alguma forma – uma paixão viva, intensa. Não sabe, e não poderia dizer se é uma paixão boa ou ruim, por um homem ou uma mulher, ou uma pedra ou um cachorro. Sabe, isso ela sabe, que o frágil corpo de menina já não acolhe aquela paixão tão desoladora; sabe que aquela bolsa pesa um mundo. Sabe que aquela cadeira não a acolhe. Sabe que a garota não tem a menor consciência de seus ombros nus, de suas pernas viradas para dentro, os joelhos tocando-se desalinhados como gravetos. Sabe que há um amor ali que transcende os limites daquele corpo, um amor que exalta aquele corpo e o incandesce.
Isso é força.
Isso é força!
Por meses escrevendo mensagens de apoio, mensagens de suporte, mensagens-muleta, mensagens de uma força de empurrãozinho. Qual!, se há por baixo de tudo, através de tudo essa força, esse tufão que marca esse olhar, é quase uma vulgaridade que ela queira oferecer como força um conforto, uma consolação. Há uma força, há uma mensagem de força que é a ascese em si, que é a grande transcendência do corpo, e os objetos terrenos, dignos ou indignos dessa força, pouco importam perante a grandeza do amor em si, da força em si!
Ah!, já pode ver! A nova coluna da Adriana – por uma nova Adriana, por uma nova mensagem, por uma nova Força!
A garota passa de repente pelo trecho da calçada onde seu olhar se perdia; o olhar perplexo volta-se rapidamente para a mesa onde jazem, como testemunhos, 50 reais.
Ao lado da mesa jazia o garçom, perplexo como ela, segurando ridiculamente alguns pratos na mão.
O logotipo da Microsoft voltara a realizar sua performance na tela do notebook.
Percebeu, subitamente, que arfava.
Percebeu-se excitada.
Enrubesceu.
Suspirou longamente. Puxou um cigarro. Pôs os óculos. Na rua, os carros passam, alguns mais rápidos, outros mais vagarosos, todos igualmente achatados pelos óculos escuros e o marejar dos olhos escondidos, encolhidos.
Tendo apoiado o cigarro ainda aceso no cinzeiro, Adriana cancela a performance do logotipo da Microsoft, se apossa do mostrador, tecla enter e insere o título da chamada da semana: “O amor que nos eleva acima de nossas dificuldades cotidianas está em nós mesmos – apodere-se!”.
A alguns metros dali a garota entra correndo no edifício Partenon, e ela não vê.
Desculpe-me a demora para essa volta da ciranda…
Mas vai girar… vai girar… gira-gira!