Vladimir Safatle publicou ontem, em sua coluna semanal na Folha, um texto veemente e afirmativo, chamado “Nós acusamos”. No texto profetiza a permanência nas ruas dos manifestantes anti-golpe, conclama a esquerda a uma “auto-crítica implacável” e acusa as grandes empresas de mídia e os defensores do impeachment por sua participação nos últimos eventos.
Quanto a tudo isso, estou de acordo e acho oportuno da parte dele, nada a declarar (salvo, claro, que não estou em posição de fazer profecias nem conclamar as esquerdas a nada, e por isso não subscrevo, por impropriedade de uma subscrição minha; mas acho a postura dele coerente e interessante); a página da Folha é cheia de empecilhos de acesso, mas um cidadão compartilhou a coluna na íntegra aqui. Escrevo, na verdade, em função de uma passagem específica da coluna – essa, que segue:
Nesse momento em que alguns inclinam-se à uma posição melancólica diante dos descaminhos do país, há de se lembrar que podemos sempre falar em nome da primeira pessoa do plural, e esta será nossa maior força.
Faz parte da lógica do poder produzir melancolia, nos levar a acreditar em nossa fraqueza e isolamento. Mas há muitos que foram, são e serão como nós. Quem chorou diante dos momentos de miséria política que esse país viveu nos últimos tempos, que se lembre de que o Brasil sempre surpreendeu e surpreenderá. Esse não é o país de Temer, Bolsonaro, Cunha, Renan, Malafaia, Alckmin.
Esse é o país de Zumbi, Prestes, Pagu, Lamarca, Francisco Julião, Darcy Ribeiro, Celso Furtado e, principalmente, nosso. Há um corpo político novo que emergirá quando a oligarquia e sua claque menos esperar.
Não imaginaria que Safatle me tivesse em conta, nem que tenha se dirigido a mim, mas me senti tocado: quem acompanha esse blog sabe que postei textos relacionados aos eventos políticos no país, e podem imaginar que o dedo em riste de Safatle aponta um grande campo que encampa, potencialmente, meus textos. Escrevo, portanto, para dizer algo a respeito de militância, engajamento, resistência e política.
Aproveitando a escolha retórica de Safatle, gostaria de comentar essa passagem de seu texto recorrendo, também, ao nós – queria, justamente, apagar a primeira pessoa do plural em um lugar onde ela foi empregada: trata-se de uma parte do primeiro capítulo de “Espectros de Marx”, de Derrida; cito, a seguir, essa passagem, substituindo o “nós” pelo eu:
Dentre os traços que caracterizam uma certa experiência própria à minha geração, eu destacaria, primeiramente, um paradoxo perturbador: trata-se de uma perturbação do “déjà vu” ou mesmo de um certo “sempre déjà vu”. Especialmente para para aqueles que, este foi também o meu caso, opunham-se, por certo, ao “marxismo” ou ao “comunismo” real (à União Soviética, à Internacional dos partidos comunistas, e a tudo que se seguia, ou seja, a tantas e tantas coisas…), mas entendiam, ao menos, nunca o terem feito a partir de motivações conservadoras ou reacionárias, nem mesmo de posições de direita moderada ou republicana. (Derrida, p. 30)
Pois bem, in terra brasilis nem se chega ao ponto em que se há de opor ao “marxismo” ou ao “comunismo” real, posto que a oposição aqui se dá, molarmente, entre PT e PSDB (estranha oposição) e, em termos “de esquerda” (estranha especificação), entre PT, com sua lógica de composição política e governabilidade e as “esquerdas com causa” – um planeta de esquerdas que proliferam desde o Psol do próprio Safatle abrangendo outros partidos e inúmeros coletivos e células e associações e entidades independentes. Quem, como eu, estranha os desígnios da esquerda como ela se projeta, não o faz em nome da direita, do ressentimento ou da alienação – fá-lo em nome de um posicionamento político.
E é nesses termos (de um certo déjà vu) que eu, quando da deflagração de nossa temporada brasileira-reality-freak-show de House of Cards, posicionei-me em defesa de um certo entristecimento, entristecimento que defendi nos textos “Rendição premiada, delação de nada”, “Wither? – an open letter” e “justiça”. Não se tratava, de forma alguma, de defender um entristecimento solipsista, ensimesmado, alienante: tratava-se, pelo contrário, de defender um desencanto, que me parecia necessário e fundamental; tratava-se de afirmar que a defesa de Dilma ou de qualquer tipo de manobra institucional que “virasse o jogo” não seria suficiente, não seria interessante, não seria o necessário; tratava-se de afirmar que o cenário desnudava um mal-estar mais fundamental, mais endêmico e dramático, cuja repercussão geraria desespero, e do desespero, sim, sairiam as perspectivas de algo politicamente digno.
Porque o desespero não é o fim. O fim é quando o desespero vira resignação, mas desespero é tudo menos resignação: é força sem imagem e sem apaziguamento em vista, desespero é o que move o capitão quando a tormenta parece mais forte que o navio – e o momento, ao que me parece, é esse. É necessário, na tormenta, lutar, e sem luta não há futuro, mas a luta não é pautada pelos protocolos nem pelo mapa: em meio à tempestade faz-se o necessário, e o caso aqui é esse: in terra brasilis, há de ser feito o necessário, o inadiável, o que já era tempo e cujo tempo nunca será.
Isso pode parecer desistência, pode parecer complacência, mas não creio que seja. É um chamado a uma posição que me parece compatível com a não-violência – a não-violência depende de uma violência fundamental, das mais disruptivas e das mais radicais, e implica a posição de quem põe tudo a perder. Nesse caso, o que apontava era o estranho da situação, estranho familiar, estranho potente porque passível de nos remeter à consolidação de algo radical. O que seria isso? Não diria em termos de nós, mas digo em termos de eu, digo o que eu acho que é fundamental: isso, que é estranho, é que estivemos enganados, e ficamos espantados, e então afetados, e então aviltados, e então ultrajados, e então enraivecidos e por fim agressivos, ressentidos e indignados, e nenhum desses movimentos fez diferença; e então o que eu propunha é que estivéssemos, por fim, desesperados, à guisa da possibilidade de que isso nos desse força.
Como assim? Explico-me recorrendo ao poema, frequentemente e aparentemente incorretamente atribuído a Brecht (seria de Maiakóvski, dizem-me os internautas), em que roubam nossas flores, pisam em nosso jardim, levam nossas coisas e tantas outras coisas, e não fazemos nada, e por fim levam tudo que é nosso e nos matam e já não podemos fazer nada – o leitor deve conhecer a poesia; segue, de qualquer forma, a primeira versão que encontrei na internet, para fins de circunstanciamento:
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
O ponto em que me distancio da posição de Safatle, a meu ver, é que acredito que nunca pudemos dizer nada – foi-nos feito pensar que poderíamos, e que se disséssemos seríamos escutados, mas não era assim, porque não é assim; no limite, penso inclusive que é por isso que não dissemos nada quando levaram nossa flor lá na primeira noite. Minha posição em relação a isso não é de impotência, mas é, pelo contrário, a de dizer que como nunca foi verdade que poderíamos ter dito, o que está sendo disputado ali na mesa do pessoal de terno não é nosso destino, e aquilo por que lutamos não está ali.
Não defendo a passividade, nem a melancolia: defendo o desespero e a indignação – é diferente. Isso me faz pensar que quando as maiores temeridades se aproximam inadiavelmente pisamos, enfim, in the darkest hour, no quintal que afinal de contas nunca foi nosso, para que possamos toma-lo enfim. Ou seja: quando o véu da democracia cai e o engodo se escancara, quando o silêncio se denuncia como o silver tape que sempre foi, aí é possível pensar em uma união contra aquilo que, desde sempre, antes que tenhamos podido ser o nós que não somos, tomava a cada eu que compõe o nós que, quiçá, podemos enfim ser.