Parar o trem

[Esse texto é uma homenagem ao blog de Naty Noguchi]
Certa vez houve um debate, na França, entre dois grandes intelectuais: Foucault e Chomsky. Discutiam política e engajamento militante.
Em algum momento do debate Chomsky levanta o ponto que gravou em mim indelevelmente o debate e a questão;  dizia ele: se os cidadãos em algum local sabem que passa próximo a eles um trem que municia soldados em uma guerra injusta, é justo e ético que eles sabotem esse trem.
Reparem: não diz que é justo matar o maquinista, nem quebrar o trem, nem invadir a sede da empresa – diz que é justo sabotar o trem (se bem me engano ela fala sobre danificar os trilhos para que o trem não passe). E o que isso significa? Algo muito simples: aquele trem tem que parar.
Essa colocação de Chomsky mexeu comigo;  mexeu comigo porque mexeu com meus brios – sem me conhecer Chomsky diz que eu não faço o que é justo e que eu deveria fazer.
Por que? Porque o trem passa, e passa cheio de injustiça, dia após dia. Ela raramente me  toca, e se fosse por egoísmo puro não me preocuparia – é justamente nesse ponto que Chomsky aperta: os cidadãos não são atingidos por aquelas balas, elas só passam pela cidade, e mesmo assim o justo é que eles achem um jeito de parar esse trem.
O que é particularmente difícil aqui é que fazer justiça nesse sentido implica em sair, e sair muito, da rotina e do cotidiano. Costumamos nos considerar justos e honestos quando tocamos nossas vidas evitando atrapalhar os outros, quando não burlamos regras e etc; não é? O que Chomsky está dizendo – ao menos a mim – é que isso não basta: precisamos parar nossos trens, sair de nossos trilhos e ir lá onde o grande trem de carga carrega munição para injustiças sistemáticas que ocorrem longe de nossos olhos.
E aqui encontramos talvez o maior desafio de todos, nessa frase logo aí acima; viram? Bom, pra quem não viu o desafio a que me refiro é que na frase aparecem dois trens. Um deles é o grande trem de carga, o que carrega munição, e o nosso trem da rotina; o outro é o nosso trem metafórico particular, é nossa rotina que nos põe e nos mantêm nos trilhos, fazendo o que podemos, sendo gente de bem.
Gente de bem. Piuí; piuí.
Aí entra o poder desconcertante da provocação de Chomsky: ser honesto e justo no seu próprio trilho não basta. É preciso, sempre que possível, parar o trem. Por que? Porque o nosso trenzinho,  “honesto e justo e gente de bem”, esse nosso trem é o mesmo trem que municia as coisas “ai que pena” “gente que tragédia” que a gente lê no jornal ou vê do lado de lá do vidro do carro.
Essa, pra mim, é a política, a micro e a macro: saber que o trem que eu vejo passar vai parar em algum lugar e, sabendo disso, lutar para ser justo. Lutar pelas pessoas, pelas causas, e não pelo trem; parar o trem, porque é preciso que ele pare – ele atropela as pessoas, e atropela as flores no asfalto.

4 comentários em “Parar o trem

  1. Que esse encontro de inspirações que se explicitou com “Isolina” por aqui e virou “Quando eu crescer” por lá, siga crescendo com todas as necessárias e merecidas paradas de trem.

  2. Vidya Naty!
    É no dia a dia que vemos a falta de ética, no cotidiano mesmo. Filosoficamente, ver a falta de ética e não responder é o mesmo que aceitar ou ser conivente, participar desta ação kármica.
    Segundo os Yamas e Niyamas, é dever de cada um a resposta a falta de ética, com consciência e em busca dela.
    Agora, parar o trem do sistema, pode acreditar que não sobrará mais trem andando. Pois muitas são as quebras da ética em nome do meio ambiente, em nome da cultura e em nome do social.
    Vou acompanhar mais o seu blog! Parabéns!
    Beijos, Vidya!

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