A vida do Alcides, e a morte

Tinha acabado de recomeçar e já precisava parar de novo – menos de dez minutos, dessa vez, e o maldito tremor já estragava o corte da plaina. Ainda bem que não tinha pensado em nenhuma grandiosidade, nenhum recorte arrojado, imagine só, não terminaria!

Olhou para a placa de madeira, já com os ângulos quase prontos. Apesar dos tremores estava indo bem; a base toda, na realidade, estava feitinha, e era até bom parar porque precisava decidir como prosseguiria. A ideia inicial era um caixão simples, com as tarraxas de ferro e a madeira encerada simples, incolor, sem festa nem desenho. Ainda hoje essa ideia parecia das mais razoáveis, não fosse pela questão da manutenção, da lápide, da exumação – olhando a coisa por esse ponto a ideia toda parecia besta, descabida. Imaginava o Apolo reclamando do pessoal da manutenção, ligando mais uma vez para confirmar se deviam mesmo deixar de cuidar da lápide, e se ele não queria mesmo negociar os meses em haver; imaginava o Apolo apressado, carro importado, terno passado, destratando o moço da exumação, “anda logo com isso, tenho mais que fazer da vida”; imaginava o Apolo fazendo pouco dele, da casa de pobre dele, do caixão de pobre dele. O Apolo no escritório chique dele, comentando com a amante, a secretária, que tinha nojo do pai. O Apolo dizendo que o tremor, e a dor de cabeça, e a dor no peito, que não era nada, que ele era um velho chato.

Ele era chato, mesmo, tinha certeza. Mas não era chato por maldade no coração, nem por dureza de se ver mais que os outros – era chato porque tinha pouco mundo nele pra fazer brilhar o olho do outro, era chato porque era muito afeito ao cemitério e pouco afeito à cidade. Gostava das velhinhas que conversavam com os maridos mortos ali no cemitério, e não sentia falta de elas falarem com ele. Gostava das flores que elas deixavam ali, e que ele não podia mexer por ordem do doutor Ermelindo, mas que gostava de ver e de imaginar como seria bom se elas não tivessem que morrer nos vasos. Era uma pena elas morrerem nos vasos, ainda mais com o tanto de terra que tinha ali no fundo.

Puxou a placa, levantou-a da mesa, mediu com os olhos a largura. Bom mesmo era se pudesse cuidar bem dessa tabuinha, punha uma quilha ali na ponta e partia por aquele tal Rio dos Mortos que o moço falou no outro dia, Ganges ou Tâmisa ou o que for, partia ele deitado, já morto, parado, tranquilo, rio afora, rio adentro, o rio comia e ficava tudo por isso, sem parcela e sem churumela, só o espírito e a paz pro espírito.

Deu fome. Lembrou do atum que tinha aberto de véspera, bom ainda, com o frio que fazia – isso dava pra até amanhã, e amanhã fazia um macarrão e pedia cebolas pro Alcindo, que tinha mesmo que sair do rumo pra comprar ancinho que o ancinho quebrou. O dinheiro ainda bastava com folga, com a graça de deus – e o Apolônio tomaria um choque, sem dúvida, quando soubesse que o pai pobre dele tinha duzentos mil no banco, imagina só a cara dele! E ele que era caidinho por dinheiro ia se amolecer todo, ficava até sentido do pouco caso que fez do pai, com certeza, ou não, não; não – Apolo não tinha de ter remorso, de ter peso na consciência, era homem de terno duro, homem de negócios, decidido, não tinha disso de fazer olho doce pro pai por dinheiro herdado: herdava o dinheiro, achava bonito o dinheiro e era isso, feito por feito, pai morto, filho satisfeito.

Comia o atum sentado no banquinho, do lado da cama. De lá olhava para a porta, e do lado de lá da porta estava a placa de madeira, ela e a prescrição de calmantes que o filho do doutor Ermelindo tinha passado, “isso é nervoso, seu Alcides, toma isso que passa”, a prescrição ali do lado da porta, moleque metido a dono da verdade, nem vê o paciente e sai passando calmante, onde já se viu calmante pra velho que morre de velhice? A Rutinha tinha dito que achava que o doutor Ermelindo queria que ele ficasse dependente de remédio para poder pendurar ele no INSS, mas ele não entendia assim, via que o doutor Ermelindo tinha pena dele – não sabia por que tinha pena, mas parecia muito que tinha pena. Muita gente parecia que tinha pena dele, e era engraçado que ele mesmo não tinha pena nenhuma dele mesmo nem de nada na vida dele – só de a Dolores ter morrido nova e ter deixado ele ali pela metade, mas isso é dos desenhos de deus e ele não estava ali para julgar ninguém, quem dirá deus. Agora, descontando a morte da Dolores, o resto da vida dele tinha sido boa – tinha tido a casa dele desde sempre, e o salário em dia, e o doutor Onofre que tinha sido pessoa maravilhosa, e depois dele o doutor Ermelindo que também era boa gente, e tinha tido o Apolo que tinha sido uma alegria atrás da outra enquanto crescia. Nunca tinha devido nada a ninguém, nunca tinha tido problema com marido que bate, nem ônibus que atrasa, nem remédio que falha, nem filho que se mata, nem filho que usa crack, e disso tirava que estava melhor que todos outros que trabalhavam ali no Liberdade.

Levantou-se do banquinho, as costas apertando um pouco o pulmão, assim de trás para frente. Devagar foi até a janela, e de lá olhou sem ver o cemitério, as sombras, as árvores, os ratos.

Imaginava ele morto, deitadão na placa, e da beleza da morte acendia um fogo que pegava na madeira e nele e em tudo, e ele morto não sentia a caloria nem dor nenhuma, mas via de fora dele mesmo e entendia que ele ali era o espírito dele que se via queimar das carnes e dos pecados e dos remorsos e dos pesos ruins da vida; queimava a madeira e o corpo e os bolores do corpo, ficava ele e o alívio, ele com o calor gostoso que era a companhia da Dolores (a Dolores mesmo não aparecia, nem ele), e era bonito de sentir. Imaginava que em breve morria, e ficava tudo bem.

Mas as pernas dele deram uma fraquejada, e ele viu que já tremia todo, e teve que procurar com a mão à frente dele o banquinho para sentar-se de novo – não que não visse, porque via, mas tateava com a mão que via que o corpo já apagava um pouco a luz e tinha medo de cair ali mesmo. Chegou ao banquinho, e sentou no banquinho, e do banquinho foi de um pulinho de perna bamba direto para a cama, e estranhou a zoeira do teto quando deitou, e sentou na cama e ficou lá, olhando para dentro para ver se tremia ou faltava força em mais algum órgão dele, mas pareceu que não. Só as costas que aumentaram as agulhadas no pulmão, aquelas de trás pra frente, e essa agulhada que parece que tirava a firmeza das pernas, era isso que parecia. Respirava cortado, e atentava para ver se pegava a morte espreitando ali, atrás da respiração, do coração, mas não viu nada – era só isso, a fraqueza, a dor, o tremor, e só. Estava velho.

Agora viu o Apolo preocupado, o Apolo o encontrava na UTI do hospital e encostava ao pé da cama, e tinha o rosto vermelho e ofegava, “pai, paizinho do céu, que horror!”, e pedia perdão e dizia que não era hora, que queria aprender a manter lápides e a cuidar das plantas e a fazer caixão, queria conhecer a morte como ele e queria aprender com ele a viver com ele, e espantar o medo da morte. O Apolo ali, redimido, querendo desfazer o mal que fez, querendo aprender a ser filho, querendo aprender a ser um bom filho. “Pai… me ensina a ser bom”.

E ele piscava comprido, e forçava, e o filho estava desesperado.

“Pai… me ensina a ser bom”.

E ele se espremeu ainda mais um pouco, e engoliu seco fazendo um barulho estranho, olhou fundo nos olhos de Apolo, fundo que tirou dali do fundo dos olhos dele algum anestésico ou calmante que ele até soltou da barriga, deixou de tremer, desencasulou, e firme firme disse pro Apolo:

Isso não se ensina, seu bosta.

Mordendo o beiço inferior, sofrendo, mas não morrendo de dor, Alcides adormeceu sentindo e sabendo que tinha raiva do filho. Esqueceu antes de acordar, e acordou antes de amanhecer, e resolveu que empenharia um quarto do dinheiro do banco na manutenção da lápide dele, e combinou com o doutor Ermelindo que seria enterrado ali onde tinha vivido por setenta anos, coisa que Ermelindo certamente não faria já que aquela parte do cemitério já estava apalavrada com o pessoal da Odebrecht que tinha projeto ali pra vizinhança (o seu Alcides, coitado, claro que seria enterrado e o jazigo mantido com carinho, mas não ali, que aquilo ali era um desperdício, falta de visão de negócios). Eventualmente todos eles morreram, mas essa parte já não importa muito.

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