Sem você o tempo é todo meu
Posso até ver o futebol
Ir ao museu, ou não
Passo o domingo olhando o mar
Ondas que vêm
Ondas que vão
Sem você é um silêncio tal
Que ouço uma nuvem a vagar no céu
Ou uma lágrima cair no chão
Mas não tem nada não
– Chico Buarque, “Sem Você no. 2”
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Domingo, 4 de março de 2012, um bar chamado “Camarão do Zé”, à beira da praia. Anotações pessoais.
…
[Bufa]
Bom, acho que posso abrir essa gravação com uma constatação de ordem prática: toda essa idéia revolucionária foi um grande engodo. Aqui, diante do mar e seu tom azul escuro que não me remete a nada de espetacular, diante do sol a se encaminhar lentamente rumo a um poente sem grande beleza, diante das ondas a quebrar meio sem convicção e ao som do vento batendo nas folhas das palmeiras, atesto definitivamente a ridiculidade da empreitada, comprovada e reforçada pelo emprego da feia e inexistente expressão “ridiculidade”. Desdobro na gravação algumas considerações esparsas de auto-indulgência e assombro com a tênue esperança de sair daqui com alguma idéia, mesmo que vaga, de como prosseguir – seja em termos de método e perspectivas de trabalho, seja em termos de insight e alívio de angústia.
Acho que estou, ainda agora, enrolando. Vamos lá.
… chegar aqui foi horrível. A gente se habitua tanto a esses filmes que passam nos cinemas que acaba fazendo planos como quem antecipa cenas de filme, é realmente ridículo. Ridículo a ponto de eu, trabalhando com jornalismo há tantos anos, realmente acreditar que sair de casa com esse gravadorzinho e encostar à praia faria com que eu tivesse idéias mais claras, ou mais limpas, ou melhores em qualquer sentido. Me peguei no flagrante quando estava já no carro, mas a essa altura a sensação de derrota já era fato consumado e a viagem poderia ainda valer a pena de alguma forma inusitada.
Bom, para que ela venha a valer a pena faltam ainda as 72 virgens, o bilhete premiado e uma porção de camarão que faça esse boteco merecer o nome ou algo do gênero; até agora o que tive foi uma sequência de ataques de nervosismo a cada dez minutos de trânsito, cadeira e mesa vagabundas, de plástico, privação de tomadas, chuveiro e internet e… e um dia na praia.
A praia não é de todo ruim; imagino que se estivesse em casa agora estaria profundamente incomodado. Não sei, talvez eu precise fazer uma mudança, comprar móveis novos, mudar a cor das paredes, comprar plantas – do jeito que as coisas estão, exatamente como antes, não é de se estranhar que eu sinta a ausência da Mia a cada momento.
É muito estranho que se possa “sentir a ausência”; não gosto disso, na verdade. Depois de tantas brigas, e tanto mal-estar, e tanta discussão… seria no mínimo justo que, quando a pessoa volta para buscar as coisas e tolera todo aquele constrangimento enquanto você espera, constrangido também, encostado a uma parede, seria no mínimo justo que ela levasse tudo mesmo – calças, blusas, sapatos, livros, a escova e principalmente, principalmente, a presença; principalmente a memória. Já que ela vai embora, já que vai atrás de alguém que a respeite e a priorize e o que quer que seja que eu não oferecia a ela, poderia pelo menos me livrar dela de uma vez! Isso é ridículo – eu passava todos aqueles fins de semana me remoendo por ter de tolerar tantos jantares e conversas e programas, pensando que estava perdendo o auge de minha carreira e que estaria melhor sem ela, e agora que ela foi embora eu tenho o fim de semana inteiro só para mim e não consigo fazer nada, absolutamente nada. Se enquanto estava com ela eu queria paz para trabalhar, por que agora que estou sozinho eu não consigo nem paz nem trabalhar?
[ Silêncio ]
Acho que a vida deveria ser como as ondas. Na verdade eu gostaria de pedir a Deus uma porção de ondas de verdade, para que eu possa dizer isso para esse gravador sem me sentir um idiota completo, mas sei que Ele não atende a pedidos assim, então falo me sentindo um idiota mesmo: acho que a vida deveria ser como as ondas; não como essas marolas, mas como as ondas de verdade, que crescem até não fazer sentido que elas cresçam tanto, se arrebentam com o maior estrondo, encharcam a praia impetuosamente, avançam sobre os castelinhos e cadeirinhas e pequenos enganos, vão se esticando como lagartos que vão ficando preguiçosos ao longo da areia, e de repente, quando menos se espera, a onda já não é mais nada, o mar é mar e é tudo o que é, e aquela onda imensa de um minutos atrás já é parte do mar, e o mar é o mar- e é o mar, diria Gilberto Gil.
[ Silêncio ]
Bom, foda-se.
Isso tudo porque eu queria ficar sozinho; é isso, eu queria ficar sozinho. Enquanto estava com a Mia eu sentia que queria ficar sozinho, e agora que a Mia foi embora eu queria ficar sozinho, sem esses restos da presença dela na minha cabeça, sem essa pontinha dela que ela deixou em mim e que não me deixa ficar sozinho, sozinho como eu queria estar e não posso.
… ontem eu acordei ótimo – ainda meio atordoado pelo resíduo do efeito do remédio, mas ótimo – e pronto para realmente aproveitar meu Nespresso; sem ladainha, sem planos para o fim de semana, sem preocupação por parentes doentes e amigas injustiçadas-e-infelizes-nos-casamentos e amigos gays injustiçados-e-vítimas-de-preconceitos: eu, os jornais econômicos no iPad, e o meu Nespresso. Perfeito, tudo perfeito – até o silêncio aparecer. Nunca reparei no silêncio, nunca me incomodei com silêncio, na verdade acho que adoro silêncio, mas lá, na minha mesa do meu café-da-manhã com meu iPad e meu Nespresso, na glória dos meus planos de solidão, eu não tolerei o silêncio. A cena me vem como uma cena de crime: o Nespresso esfriando na xícara, todas as notícias esperando por mim, tudo na mais perfeita e promissora ordem, e eu ao fundo tomando calmante com energético (ó ironia, só tinha energético na geladeira e eu, idiota, alterado, nem me dei conta do que fazia) – como uma solteirona em crise de ansiedade; como um asmático com sua bombinha.
Em vista da tragédia de ontem a praia realmente pareceu um bom plano; qual será o próximo passo? Férias na editora, viagem de auto-conhecimento por Santiago de Compostela, psicanálise três vezes por semana, um retiro espiritual?
… isso é ridículo.
Talvez eu possa pedir um projeto técnico ao coordenador do setor, só por uns meses – já que estou invadido pela presença da Mia talvez um tempo fazendo trabalho de toupeira me ajude a desintoxicar.
[ Silêncio ]
Será que ela também está perdida assim?
[ Silêncio ]
Bom… acho que a missão naufragou definitivamente. Acho que o melhor que a praia pode me oferecer agora não é, definitivamente, a quietude para organizar os pensamentos e produzir material gravado que possa aproveitar. Encerro a gravação na esperança de que os momentos que passe só observando o pôr-do-sol me tranquilizem. Quem sabe as virgens e o bilhete premiado aparecem…
Ô amigo! Vê mais uma porçãozinha daquela para mim, no capricho, e uma caipirinha de limão? Certo, obrigado!
Ai, caralho….
…
Ô Sérgio, tudo bem, cara? Ótimo, cara, eu estou ótimo! Estou na praia, cara, acredita? Ah, é, com certeza, me livrei da patroa e vim passar o dia aqui, apreciar a paisagem, os biquininhos; incrível, cara, incrível!
Ah, espera um minutinho, esqueci de desligar o gravador aqui, estava gravando uns trechos para o trabalho…
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