Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Pega uma revista Caras. Corre as páginas pelos dedos, parando em páginas em que aparecem atrizes e modelos em páginas inteiras. Lê uma matéria sobre Isabeli Fontana – não sabia e não sabe quem é – e como concilia a carreira com a criação dos dois filhos. Nas fotos Isabeli aparecia com camisa social listrada, azul e branca, e calcinha. Pula as páginas rapidamente, lê mais um texto sobre uma premiação de artistas em São Paulo em que compareceu Sabrina Sato, uma artista, com um microscópico vestido verde e uma coisa estranha que parecia um terceiro olho entre os dois olhos de verdade. Logo chega a um comercial de relógios de ouro, na última página da revista. Joga-a sobre a pilha de revistas, abaixando-se para ajeitá-la ao ver que caiu torta amassando a capa.
Bufa.
Abre uma revista Alfa; busca no índice a matéria de capa, sobre Danilo Gentili; lê o começo de cada parágrafo. Olha para a porta fechada. Fecha a revista Alfa, deixa-a sobre a poltrona ao lado.
Vai ao banheiro, lava o rosto. Volta à sala de espera, senta na poltrona. Põe as mãos sobre as coxas – olha-as por um instante.
Bufa.
A porta se abre, sai uma menina com um vestido florido; ele olha para o rosto dela, acha que ela deve ter chorado na sessão.
Bom dia, tudo… claro, eu aguardo.
A porta fecha. Olha no relógio, bate na camisa como se fosse tirar o pó.
Bom dia! Tudo bem?
Deita-se no divã.
Suspira.
Estava lendo a Alfa lá na sala de espera; a edição era de maio, acho – a mais recente que eu achei. Qualquer dia vou procurar lá a edição especial das Olimpíadas de Atenas.
Ri.
Silêncio.
Bufa.
Sabe, um dia desses passei por uma coisa muito curiosa lá no trabalho. A equipe ia visitar um serviço em outro município, e fomos com um motorista contratado pela prefeitura, terceirizado, sabe? um cara legal até, chama Rodrigo. Bom, acabou que eu sentei no banco da frente com ele, de cara achei bom, eu acordo meio sonolento e muita conversa me irrita, pensei que lá eu ia ficar isolado e poderia, se bobeasse, até dormir, enfim, não sei. Mas no fim das contas não dormi nada, o tal do Rodrigo queria porque queria conversar, me perguntava do serviço que a gente trabalhava, do serviço para onde a gente ia, essas coisas. E eu, bom, não sei, já tenho uma tendência da profissão a ouvir mais do que falar, e aí acho que junta que com o sono que eu de fato estava, eu estava pouco propenso a ficar falando da minha vida, e o cara pelo jeito não toleraria silêncio… enfim, sei que, quando percebi, estava lá o Rodrigo a abrir a caixa de Pandora da sua rotina para mim, e eu ouvindo, só faltava a cara de mousse e o “ã-hã”, quem sabe uma poltrona e ele num divã – se bem que eu era capaz de enxotar ele do divã e deitar para dormir um pouquinho… enfim, o que eu achei impressionante é que ele foi falando da vida dele, e ele é de lá do município onde eu trabalho mesmo, e eu fui percebendo: meu Deus, esse cara vive em outro planeta! Aí você pergunta ‘por que?’ – quer dizer, não você, você nunca pergunta, mas supondo que você perguntasse eu te responderia de bom grado, e responderia o seguinte: ele foi me contando da vida dele, e ‘tá, a vida dele de fato é bem diferente da minha, mas não é nem isso, o ponto é que ele construiu toda a vida dele a partir de uma perspectiva que para mim é absolutamente estranha; o cara é de Taboão, deve ter uns 25 anos e já é casado e tem um filho de uns 2 anos, mora numa casa própria com esposa e filho e na edícula mora a cunhada, ele inclusive construiu a edícula para a cunhada na expectativa de que pudesse ter um caso com ela, mas aí, diz ele, não rolou e tudo bem, eles são bons amigos e tudo, mas pensa bem, ele teria um caso com a cunhada! aí ele trabalha com transportes, tinha dois caminhões que… vou começar do começo, tinha dois caminhões e o micro-ônibus e dois carros de passeio, e todos ele comprou em leilão (inclusive o leilão é perto de onde moram minha família!), leilão no geral é roubada mas ele conhece uns caras e por isso ele pode ligar o carro para ver se pega, coisa que no geral não se pode fazer, aí com isso ele compra os carros num preço em conta e não se arrisca. Enfim, ele trabalha muito com o micro-ônibus, é contratado direto pela Prefeitura e em feriados e no fim de semana trabalha numa cooperativa de motoristas que desce para a Baixada saindo de lá do Jabaquara; essa cooperativa foi o assunto que ele mais falou, é uma coisa super cheia de mutretas e esquemas, eles subornam deus e o mundo para poder transitar sem pagar imposto (imposto legal, porque imposto-suborno eles pagam um monte) e para descer pela Imigrantes (porque não pode, e porque para descer pela Anchieta eles levariam o triplo do tempo e não valeria a pena) e para não parar em fiscalização nem em blitz nem em nada. E ele trabalha horrores nessa coisa, chega a virar 40, 50 horas sem dormir só subindo e descendo, na base do “Red Bull com guaraná” (duvido que seja só isso, mas foi isso que ele disse que toma) para poder pagar as contas, porque a Prefeitura paga bem mas leva 3, 4 meses para pagar e as contas chegam todo mês e ele precisa se virar, aí num final de semana normal ele leva tipo uns mil reais, em feriado a coisa melhora bastante, e por fim de semana eles gastam uns 300 reais para subornar todos os fiscais que tem por ali, mas no fim das contas a impressão que ficou para mim é que o cara enche o rabo de grana – pensa bem, tem ainda os caminhões que ele aluga!, se bem que acho que agora é um caminhão só, o outro ele vendeu, inclusive disse que vendeu por uns 60 mil, e aí minha cabeça ficava que nem aquele impostômetro que tem lá no centro, os numerinhos rodando para tentar contabilizar o que não tem tamanho nem nunca terá… e o que mais me chocava nisso tudo nem era o surreal do relato, mas era que esse cara conseguia falar isso tudo com uma postura de quem realmente não se julga por aquilo tudo, sei lá, como se ele tivesse crescido sob uma Constituição diferente, como se fosse de uma outra tribo que não a minha. E aí eu fiquei lembrando dessas coisas todas – meu deus, como eu sou cabeçudo, né? – lembrando das cosmogonias, e da coisa do mundo-próprio do Uexkühl e do texto da Sandra Sawaya sobre a socialização na miséria, e fui ficando fascinado com isso: o cara frequenta a mesma cidade que eu frequento, mas a cidade que ele frequenta é absolutamente outra! Porque não é que o cara fosse um pilantra ou um fora da lei, a lei pela qual ele vive é outra, é como se a lei fosse um cristal incrustado entre os homens e a face que olha para ele é uma outra que não a que olha para mim e para nós… nós burgueses. Porque ele me contava, por exemplo, de como ele ficava às vezes na baixada por um tempo para relaxar, e dormia na casa de um irmão que mora na praia grande, mas não podia dormir na casa mesmo porque a cunhada (outra, não a que mora com ele) dedaria tudo para a esposa, e eu inocente perguntei ‘por que tua mulher não pode saber que você pára na baixada para descansar?’, e aí ele me olhou como quem olha para um retardado que não entendeu absolutamente nada e disse ‘é que eu descanso na farra, não dormindo, eu durmo depois de beber e me divertir um pouquinho que ninguém é de ferro’ ou coisa que o valha, mas no jeito que ele disse isso não tinha aquela coisa ativo-passivo do neurótico burguês que trai a mulher, ele falava quase com uma sabedoria ou uma candura, sei lá eu com o que, o lance é que o cara é regido por um outro código de leis, algo assim, e eu fui percebendo que eu não acho, e acho que ninguém poderia pensar, que o meu, o nosso é melhor que o dele, porque não é! Ele vive uma outra face das leis, sabe? E aí eu me lembrei, não na hora, mas agora mesmo, de um texto que falava sobre os excluídos, e a ideia era justamente dizer que os excluídos não eram excluídos, eles eram peça central na engrenagem do sistema, mas o papel deles era um papel de sujeição – os excluídos não são excluídos, eles são oprimidos, no sentido de que o papel deles não é de adesão “seca” ao consumo e ao sistema capitalista, mas eles são manipulados e ideologicamente investidos e eles acabam meio que “pagando o pato”, mas aí no caso do Rodrigo me pareceu que ele não está exatamente sofrendo com essa condição oprimida e toda essa lenga-lenga, parece mais que ele encontrou um nicho, um vão na máquina capitalista onde ele se instala e vive de acordo com um regime de signos e leia todo próprio, uma espécie de Mad Max que fosse só um bairro de uma suposta cidade-homogênea. E aí eu fiquei pensando, por que será que a gente se sujeita a todas essas coisas, a trabalhar e a casar e a fazer análise e a pagar as contas… que? Acabou? Jura? Que horas são?
Olha no relógio, faz uma careta. Paga, levanta. Sai, a cabeça abaixada, confirmando o horário da próxima sessão.
Balançando levemente a cabeça ainda abaixada em sinal negativo, chama o elevador. Murmura: “250 reais para quarenta minutos me ouvindo sem falar porra nenhuma. Puta que o pariu…”
Um discreto sorriso se desenha em seu rosto enquanto ele entra no elevador e aperta o primeiro subsolo, esperando que não pare em nenhum andar, que não entre mais ninguém – ele odeia conversas de elevador.