“Quantas padarias tem São Paulo?”
[ Foi há um certo tempo que perguntaram; a pergunta não deixa de ser boa. Quantas padarias haveria na cidade? Quanta gente tomando pão com café? Quanta gente checando seus e-mails em seus celulares, arrumando seus cabelos com espelhos diminutos?
Dez mil, imagino. Ou não, talvez mais: quinze mil padarias.
Isso daria umas cinquenta mil pessoas, nesse exato momento, comendo seus cafés-com-pão. Certo, nem todas heads de empresa de ponta; nem todas promissoras, jovens.. ainda assim, que incrível! ]
Ele olha em volta em busca do reconhecimento de tudo que ele é. O café é estranhamente anônimo, e os pensamentos de anonimato não raro o assolam, travestidos de cálculos e sistematizações que conferem a inteligibilidade que lhe é tolerável.
Ah, o exílio da vida pública! Pudesse e ele decerto voltaria ao conforto que sempre foi seu, conforto que jamais teve – a vida num complexo executivo, business building/ residential tower/ mall. Que prazer flanar de um lado a outro e ver a seu lado só pessoas de significância, capital humano realmente significativo! Identificar-se com cada passante, sem susto.
Poucas vezes se autorizava a desejar efetivamente esse retorno-ingresso – talvez pelo simples fato de ser desejo não acessível a ele ainda, bem-sucedido mas ainda não tanto; e como lhe doeria ter de passar em seus pensamentos por esse “ainda não tanto”!
Nos dez minutos que se consomem no café com pão, não se pode dizer com segurança se ele sequer viu Marina. Marina que serviu seu pão, tirou seu café, Marina que trabalha na padaria há quase seis meses, já.
Imagina, Marina,
se em algum momento lhe será seu
algum prazer ou alegria como essas, essas desses
Alegria de terno nunca teve.
Não que o deseje
já que são muitas e várias as alegrias que conta
Alegrias de novela,
de ver e morar com sua vó,
de ouvir as conversas dos outros no ônibus,
de apostólica da igreja de Deus;
alegrias que não imagina nos corações desses ternos que tomam seus cafés
desses celulares que tanta coisa têm a mostrar
desses corpos que respeitam movimentos tão diversos. E pensa Marina:
“Seriam meus olhos
a ver-te triste, terno?
Ou seria terna minha dor
em respeitar a dor que sentes
e esfrias com medo de vê-la ferver?
Oh, Terno… Terno,
se soubesses a beleza que ocultas,
sério como as mais tristes coisas da vida,
terno, eterno e sem pudores, um novo amor se faria sentir”.
Marina é considerada estranha pelos colegas de trabalho; seu olhar é distante e dificilmente atende ao primeiro chamado, sendo necessário repetir ou cutucá-la. No almoço (que não compartilha com os colegas, almoçando sozinha na soleira da saída dos fundos) Tenório imita-a e todos riem.
Marina não vê e não ouve, mas sabe que o grupo não a acolhe. Sente que as brincadeiras e o repúdio ficam mais intensos conforme ela não se esforça para pertencer e conquistar os colegas.
Marina não se importa.
E não vê. Como marina que é, Marina contempla as grandes distâncias e tem o olhar fixo na fina linha do horizonte, onde a água encontra o céu. As palavras que lhe ocorrem como se fossem poesias, Marina não as completa – admira-as como se fossem cartas de um admirador secreto. Como uma música que ouviu uma vez no trem:
não sou eu quem me navega,
quem me navega é o mar
é ele quem me carrega como nem fosse levar
… palavras. Como tantas outras, palavras; palavras que Marina cantarola, caleidoscópica, enquanto seu pensamento navega tranquilo entre as quadrinhas e sonetos que não são seus, mas que nas suas marinas atracam, entre as sutis fantasias em que casa e cuida dos executivos que admiram seus respeitosos celulares e ajustam suas coloridas gravatas, enquanto tira seus cafés e enquanto serve seus pães e lanches e vitaminas, enquanto lembra da mãe e dos planos da mãe para ela, e enquanto lembra do inevitável fracasso dos planos da mãe para ela, e enquanto pensa no vizinho que teve um derrame e já não move as pernas, e enquanto]
“Toma-me em teus braços
e me faz tua,
tua como já sou,
perdamo-nos em sonhos e lençóis devassos
É parca e breve a vida, amor,
e teus sonhos decerto já não esperam.
Deixa-me ser contigo
Que a alegria e os desterros do gozo
já vejo que, querendo, nos levam.
Sejamos um,
me ensina a ser tua
que eu já não espero mais”.
O executivo ainda lhe ocorreria uma vez, no ônibus – seu olhar perdido no distante horizonte e ele passa como fosse uma gaivota – e ela esboçaria um pequeno sorriso, e seu olhar se baixaria como se Deus a visse e ela se envergonhasse de seu desejo; se Deus viu ele nada fez (não foi fulminada por um raio nem recriminada por ninguém), e ela desse desejo nada fez, e não lembraria muito dele até o dia em que o visse – e veria ainda muitas vezes – na padaria.
Marina leva uma hora e meia para chegar ao trabalho e duas horas e meia para voltar. Quantas palavras, quantas gaivotas na marina, no distante horizonte – amplo céu e doces águas que só a marina viu, que só Marina vê.
[ Quase nove! Onde eu estava com a cabeça? Merda!
E agora essa vagabunda resolve ir pra longe do caixa – ah, caralho!
… bela bunda! ]
Difícil dizer se ele chega a ver Marina. É quase certo que não: ver a marina e não ver a beleza e riqueza que esconde em sua frágil e delicada composição, seu descuidado arremesso em direção às águas e o distante horizonte, ver a marina e só ver a precariedade da composição e a rudeza da matéria… decerto não se vê a Marina e o que a Marina tem de si.
Atrasado por Marina, e a falta de eficiência de Marina, e a bunda de Marina que demora a pegar o liquidificador debaixo do balcão, ele chega ao escritório 6 minutos atrasado – um a mais do que o tolerado pelo ponto eletrônico.
E isso Marina não viu.
17 de janeiro
W
acabei de ler UM PASSEO SOCRÁTICO, do frei Beto e vocês abordam,de um modo diferente o mesmo tema.AMEI os dois! PREFERI o seu! Mais humano ,mais contundente!
bj
B