De tudo um muito ou Formatar/resetar/ejetar 2



 

  Ele queria poder esmurrar o telefone na janela; queria quebrar a janela do táxi com o telefone – e quebrar o telefone com a janela do táxi.

[você não merece o dinheiro que tem] [você não merece nada] [o mundo te odeia] [você não tem estilo nem talento]

  Mas o telefone e a janela continuavam lá, desrespeitosos – e o celular apagado.

  Ao longo de toda a viagem esteve concentrado no celular apagado, desconcertado – como pode? Ou melhor, como pôde? Como o iPhone decide justo agora descarregar – ele poderia receber a ligação a qualquer instante, e se perdesse a ligação provavelmente perderia o negócio (ele não imagina o que poderia acontecer se perdesse o negócio). Talvez por não olhar para fora da janela e para fora da tela apagada do celular ele quase não percebeu que o céu estava negro e chovia aos cântaros. Reconheceu seu prédio com um certo assombro pela janela e saiu apressado (precisava  chegar logo para ligar seu celular com o carregador!. Além disso chovia, chovia muito); ouviu o taxista gritando e deu-se conta de que não havia pago a corrida – no tempo que levou para pegar a carteira e o dinheiro e esperar o troco e tropeçar na sargeta, encharcou-se inteiro. O porteiro levou ainda dois ou três segundos para vê-lo e abrir o portão (“merdinha filho da puta”, disse ele de si para si enquanto passava pelo porteiro em direção ao elevador).

[eu não te respeito] [eu sou nordestino, feio e pobre e sou mais feliz que você] [você tem medo de mim porque sabe que eu te desprezo com toda minha força]

  Caprichosamente o elevador se demorava; apertou as teclas do celular por duas vezes em busca de uma resposta, desfazendo-se e eletrificando-se com a demora do elevador. Na busca desesperada por alguma ocupação pegou a comanda do almoço no bolso traseiro – não enxergava nada.

  Descolou o olhar da comanda. Levantou a cabeça e olhou à sua volta como se percebesse uma nova dimensão.

  O saguão estava quase escuro, a pouca luz vindo da vidraça da porta, vindo do céu, negro céu.

  Só então lhe ocorreu o pior e ele anteviu a tragédia. Olhou à sua volta coletando as evidências, evitando a conclusão, em busca da salvadora contraprova, mas não: acabou chegando ao inevitável diagnóstico:

  o prédio estava sem luz.

  toda a tensão, toda a eletricidade e a à-flor-da-pelice esvaiu-se em uma fração de segundo – era como um condenado à morte que ele subia as escadas; longas, longas escadas conduziam ao seu 602, seu refúgio e esperança, sua guarida contra o mundo cão.

 [oh, céus!] [eu vou morrer!] [não faz sentido nenhum]

  “Que dia horroroso”, ele pensava de si para si, como se buscasse em si mesmo um afago, um consolo (o dia a que se referia tivera trinta minutos – os trinta minutos que o separavam do último minuto de atividade de seu celular).

  O que esperava de sua fortaleza? Como poderia seu apartamento fazê-lo perdoar e esquecer as mazelas e a impetuosidade do mundo? Um banho quente, uma boa pizza, um filme?

  Talvez tenha sido isso que ele tenha antevisto nas escadas, reunindo suas forças para subir os degraus e chegar ao 602 como quem chega a água no mais hostil dos desertos.

  A chave – pelo menos ela – colabora: não cede, não trinca, não explode em sua mão nem pula para o vão da escadaria. A porta abre, e é estranho que não se ouçam os sons de uma ode à vitória. Estranho mesmo: já à porta ele sente que algo não está certo.

.

  A luz da sala não acende. Talvez ele devesse imaginar que isso aconteceria – mas não havia imaginado.

  O golpe é demais para ele.

  Só a cama, agora. Resta-lhe o descanso reconfortante, cinco minutos de paz e a revigoração, combater isso tudo e vencer!

  A cama o repele. Pouco mais de um minuto ele persiste; rolando, bufando. “Não!”: levanta.

  Talvez uma roupa seca…

  Talvez se na geladeira…

  um banho quente…

 !

  Não – nada o acolhe naquele apartamento, e a estranheza do apartamento o ataca mais do que a chuvosa e apagada cidade. Como pode? Sentia-se como se alguém tivesse entrado em seu apartamento e roubado-lhe a alma.

  O lento, confuso olhar pela sala marca o início de seu frenesi. Sai pela porta como se fugisse – não se lembraria depois se havia fechado a porta ou se foi obra do vento; desce as escadas em plena correria; o mesmo merdinha filho da puta abre a porta e ele mal o vê.

  Ainda chove na rua.

  Seu primeiro impulso é olhar a rua em busca de um táxi. Chega a esperar por um por algum tempo. Pensa, então, no alívio que seria: entraria no táxi, pediria desculpas por molhar o banco (taxista é uma raça maldita, tem que fazer o tipo deles senão eles te fodem) e poderia ir enfim para…

  … é então que se vira e desiste de esperar por um táxi.

  (talvez ele pudesse ter ido a um restaurante caro em busca de conforto. Ou à casa de algum amigo. Nada disso lhe convenceu – só a ideia do restaurante chegou a lhe ocorrer).

  Agora via-se andando pela calçada, olhando para a calçada, respirando profundamente, e ele podia sentir seu corpo murchando. Dobrou a primeira esquina (muito mais para se poupar o esforço de levantar a vista no ato de atravessar a rua do que como escolha de um trajeto); subia a rua.

  Mais ou menos duas quadras acima de sua rua ocorreu-lhe que deveria parecer aqueles personagens soturnos dos quadrinhos de sua adolescência.

  Sorriu, nessa hora.

11 de janeiro

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