Não conheci Bachelard, nem Ricoeur – viveram num país que não o meu, num tempo igualmente estranho a mim, e morreram antes de que eu nascesse, pelado e infante, em São Paulo. Seja como for, muito se ouve falar deles e do que pensavam do mundo e muito desse muito que se ouve quem ouve sou eu;
Ricoeur pensava que as metáforas possuíam algo de radicalmente verdadeiro, que passava despercebido pelas próprias pessoas que usavam as metáforas. Para ele, as metáforas criam algo na medida em que são utilizadas, porque conferem unidade, sentido e direcionamento a um conjunto heteróclito de experiências; assim, a metáfora dá forma, origem e destino ao que se experiencia e, por isso, quem experiencia com o aporte da metáfora já experiencia algo distinto pela próprio uso da metáfora.
Bachelard, por outro lado, desconfiava do uso da metáfora. Vá lá, seu interesse é distinto e sua visada é outra, mas a diferença existe. Bachelard pensava muito sobre a forma como se pensa num sentido mais estrito, mais acadêmcio que Ricoeur. Talvez por isso sua relação com a metáfora é litigiosa: para ele a metáfora não tem legitimidade e não produz nada de positivo no campo do conhecimento – a metáfora é um truque, uma forma ideológica e falsa de gerar conhecimento.
Como disse, nasci depois que morreram e em outro lugar – ainda que pensasse algo relevante para a discussão, estaria discutindo com – na melhor das hipóteses – interlocutores ausentes. Não pude deixar de lembrar deles, de qualquer forma, em função de um pensamento absolutamente extravagante em meio a meus devaneios habituais. Tento, a seguir, reportar os fatos.
Lia algo, ou ouvia algo, não recordo. Sei por certo que se tratava de autor interessante e talentoso a meus olhos, e que não tinha atingido – ainda a meus olhos – o devido reconhecimento por parte do grande público. Me ocorreu: “não foi exatamente uma carreira meteórica…”.
Estranhei-me: “e daí? Seja quem for, fez seu rumo, expressou o que lhe vinha no íntimo, trilhou sua história e foi o que foi; que tem os meteoros a ensinar aos homens?”; ralhava com meu pensamento ingênuo, e quase não percebi o que me pensei a mim. Os meteoros… o que ensinam aos homens… tinha em mente a idéia de que não deveria ser obrigação de ninguém traçar uma carreira meteórica, era isso. Carreiras, ou vidas, que sejam elas elípticas, circulares, pendulares, transversais – contanto que retumbem, reverberem, retomem seu próprio ritmo à procura do que seria seu arremesso íntimo, inarredável – se é que o há.
E a carreira meteórica? Esse mito burguês, essa norma ideológica – de que se trata?
Aí me veio o choque: supõe-se, comumente, que carreiras meteóricas são aquelas que têm uma ascensão incrível, alçando o topo e o prestígio máximo em tempo mínimo – essa é a idéia, certo?
Se é assim, porque será que os meteoros sempre caem, e são sempre breves?
Imaginemos a carreira meteórica por outras facetas, em busca do sentido da metáfora…
Carreiras meteóricas reluzem; influenciam muita gente; são vistas por todos; admiram e encantam aos homens; têm uma longa cauda flamejante que excede em muito a dimensão da rocha que lhe dá origem.
Retomo meus falecidos interlocutores, Bachelard e Ricoeur; mesmo sabendo que estão mortos, sei mais intima e fortemente ainda que são mortas todas as pessoas que povoam minha memória e minha mente – se as pessoas em si não são mortas, suas vidas mudaram suas feições, convicções, formas de ser e agir e aquelas que tenho em mim já são – reitero pela força – mortas. Enfim: mortos por mortos, dialogo com os mortos Ricoeur e Bachalerd.
Bachelard, não sei se bem o compreendi. Sinceramente, não o ouvi, e baseio-me apenas em notícias indiretas que tive do que você disse. Seja como for, discordo do que tenho em mim de você. Ricoeur, ao menos agora, me auxilia de forma mais direta e contundente.
Ricoeur, as metáforas criam pela totalidade que emprestam, certo? Sua função criadora e ativa é muitas vezes desconhecida aos próprios usuários da metáfora, certo?
Isso deixa a metáfora a um passo da ideologia, certo?
Se é disso que se trata, o esclarecimento porta um poder libertador, não?
Será que não é concebível que a metáfora da “carreira meteórica” não é forjada no bojo de um projeto ideológico, fazendo-nos crer que se trata de luminescência e prestígio quando se passa pouco mais que fogo, queda e brevidade? Não seriam mais interessantes carreiras/trajetórias/vidas que queimassem um fogo íntimo, e que se arremessassem entre gravidades múltiplas, e cuja cauda/brilho/atenção se fizesse na medida de seu próprio fogo e não pelo contato com uma atmosfera que desfaz o corpo que cai?
Será que não é tempo de sabermos que as carreiras meteóricas destróem os corpos que as vivem?
Será que não são verdadeiramente incendiantes e propulsores os corpos cujas trajetórias queimam entre a cauda do meteoro e a lenta explosão das estrelas, cujo corpo pulsa entre gravidades múltiplas e sempre em rumo incerto, cujo futuro e passado imponderáveis se alteram à medida que se redireciona e redireciona à chama que a move e que a faz brilhar?
Será ideológico pensar que um único meteoro revolucionou e pôs abaixo o império dinossáurico e impõs novas ditaduras e formas de vida? Serão os meteoros tão poderosos?
*
Meteoros – corolário 1.
Operários ficam presos em mina há centenas de metros da superfície no Chile. A notícia se espalha e a população mundial volta os olhos para o singular/paradigmático/universal drama subterrâneo. Cerca de 40 dias se passam até que os operários saiam – quando saem, a superfície está totalmente repleta de vans-caminhões-carros-câmeras-microfones-repórteres-políticos-público-parasitas-interessados-transeuntes. O presidente chileno faz um discurso “em homenagem aos operários”; a CNN cobre ao vivo e oferece uma retrospectiva de uma hora do drama. Centenas de horários nobres e coberturas exclusivas ao redor do globo.
Algum operário pode ter pensado que aquilo tinha, de fato, a ver com ele.
No Brasil ou na Inglaterra ou em Bangladesh, um mês após o ocorrido, não é possível saber que fim tiveram os operários. É igualmente provável que tenham voltado a minas, virado atores em Dollywood e mortos pelo governo chileno como queima de arquivo.
Meteoros – corolário 2.
Santos Futebol Clube entra em 2010 com elenco quase totalmente distinto do que encerrou 2009. Muitos são jovens trazidos das categorias – decorrência provável da mudança de gestão e falta de recursos.
O destino faz com que o time funcione e o estrelato vem como se fosse inexorável. Entre os jovens talentos sobressai-se Neymar: fotogênico, falante, risonho, driblador, narcisista – a fama lhe cai como uma luva e são poucos os meses que separam o anonimato das capas de jornais internacionais.
Em menos de seis meses cifras milionárias dançam, vindas de toda parte, vestidas de todas cores; desenham-se à sua frente (e a de seus pais e empresários e contratantes e amigos) palácios, programas de televisão, viagens, fama.
Inaugura-se um imbróglio de meses de duração e que culmina com uma gloriosa vitória do time praiano: Neymar abdica das carreiras milionárias e escolhe ficar no time que o criou, com reformulação de contrato, novas parcerias, site, blog, microblog, aumento, prêmios e um projeto de carreira. “Faz-se história”, “o novo dia do Fico”. Houve quem levasse à rua, naqueles dias, olhos marejados: venceu o futebol bonito e inocente. O dinheiro não falou mais alto.
Neymar ouviu seu coração.
A primeira derrota do império europeu-capitalista.
O fim da…
pfff.
“We encounter something that crumbles and we do not know what it is, it responds to no code, it flees underneath the codes; and this is even true, in this respect, for capitalism, which for a long time believed it could always secure simili-codes; this, then, is what we call the well-known power [puissance] of recuperation within capitalism–when we say recuperate we mean: each time something seems to escape capitalism, seems to pass beneath its simili-codes; it reabsorbs all this, it adds one more axiom and the machine starts up again” (DELEUZE, curso em Vincennes, 16/11/1971)
.7 de janeiro.