Adolescente, lembro que tinha devaneios e fazia planos de um dia escrever um livro que terminasse abruptamente, com poucas páginas, porque o protagonista tenta fazer algo arriscado, e aquilo dá errado, e ele morre ou fica paralítico. Dali se seguiria um breve capítulo em que o narrador conta que o livro seguiria com outras aventuras, que o protagonista se apaixonaria, que ele impediria um míssil russo de atingir os EUA etc etc., mas que como ele foi atingido por aquela bala ou atropelado por aquele carro aquela história estaria impedida de acontecer. Seguiriam-se 50 ou 60 páginas em branco. Obviamente o livro era, em meus devaneios, sucesso retumbante e eu mudava os rumos da literatura e do pensamentos das pessoas sobre o mundo e tudo o mais.
Por vezes eu assinava um filme em que o herói, tendo combatido tudo e todos, superado todos desafios e convencido os descrentes; tendo surrado tantos oponentes, fugido de tantas armadilhas; ele encontra-se com o seu grande antagonista e, num daqueles longos diálogos que antecedem a batalha final, é convencido de que ele era, afinal de contas, o verdadeiro vilão. Seguir-se-iam (no filme que eu assinava) cenas anteriores, revisitadas, com a nova perspectiva, que deixavam claro que ele era, de fato, o vilão da história. O filme acaba sem mostrar o que ele faz com o curioso insight.
Valinhense, muitas vezes eu desenhava minha inconformação com a ordem das coisas, queria que tudo pudesse ser diferente ou que pelo menos as pessoas lutassem por isso (não armas, obviamente; sendo valinhense e sendo também de média alta e sendo também bem-educado, era bem contra qualquer tipo de violência e coerção).
Fui percebendo, chegando em São Paulo, que eu não era o único; descobri, na verdade, que toda essa inconformação e esses desejos – mesmo o fato de eu ler muito e ler as coisas que lia – eram atributos de toda uma massa de adolescentes. Eu poderia ter ficado feliz: havia, afinal de contas, o tal movimento, a luta, a inconformação!
Não foi assim. Porque se, por um lado, havia companhia na luta, havia outros inconformados, outros que percebiam, outros que queriam mudar, havia por outro lado a vaga sensação de que, se já éramos tantos, por que será que as coisas não mudavam pela simples visão de nossa razão, de nossa corretude? Digo, era óbvio: eu sabia – como os outros – que as coisas estavam erradas: sabia o que estava errado, sabia por que, sabia o que deveria mudar e como. Por que as pessoas não percebiam isso e mudavam?
Apiedo-me hoje, compreensivo, com a crise de meu herói de adolescência: querendo tanto ser herói, fazer o bem, mudar o mundo, deixa de perceber que havia em algum momento posto os pés pelas mãos e estava ocupando, ele mesmo (quem diria!) o lugar de vilão. Caricato vilão.
Caricato vilão. E de fato não é tão assim, seria ele vilão mesmo? Se ele fizera tudo aquilo querendo melhorar as coisas e fazer tudo fazer sentido, agora que ele tinha finalmente entendido não poderia consertar suas intenções e manter seu ímpeto, para finalmente fazer o bem definitivo? Se ele fizera tudo aquilo pelo Mal, agora que ele sabia o que era o Bem poderia redobrar sua portentosidade e endireitar sua batalha – faria o Bem! Os inimigos tremeriam e cairiam em seus joelhos! Agora ele sabia o que era certo!
Ou será que não? Talvez ele tenha novamente se convencido demasiadamente rápido de uma grandeza e corretude, atirando-se sobre inimigos e vilões que ele tinha certeza que o eram – e será que eram? Como saberia que estava certo? Como garantir que lutava pelos símbolos de seu emblema?
[ a idéia de um Darth Vader caricato sentado sobre uma pedra, à la O Pensador, enquanto Luke aguarda inquieto às suas costas, me ocorre – talvez eu devesse ser cartunista, poderia incluir o cartum aqui; talvez assim as pessoas entendessem;
talvez, se eu fosse um cartunista realmente bom e habilidoso, eu conseguiria inserir discretamente elementos que fizessem as pessoas se identificar com os personagens – e elas perceberiam que eram o Luke, e eram o Darth Vader;
e com isso eu tombaria meus inimigos e os deixaria de joelhos? Seriam elas os vilões tombados do Darth Vader?
seria eu Darth Vader? ]
E talvez os ideais e a inconformação (sobretudo a inconformação) e a contestação do que estava errado no mundo todo era simplesmente reflexo de minha adolescência. Como dizem, o adolescente contesta todo o mundo adulto, para o qual ele começa a perceber que ruma, inexorável – e o adolescente se aterroriza e grita e luta e esperneia, ali não!, e tenta ao mesmo tempo mudar tudo aquilo e mostrar que aquilo está errado: todo esse movimento é parte de seu movimento de lento acesso ao mundo adulto. Assim eu antecipava meu lugar, quando adulto, percebendo a adolescenticidade de meus heróis; assim também eu acusava meus pais – obviamente os heróis têm que ser meus pais – de terem se enganado, de querer as coisas e abandoná-las, e mais!: de querer me convencer de que elas estavam certas quando não estavam, elas eram os vilões – os vilões! – de toda a história, e estavam me subvertendo.
Tropa de Elite 2. André Mathias, figurão do BOPE. Confrontado com os caras errados – a mídia selvagem, os carrascos da politicagem, a massa manipulada – contesta, mártir: “capitão, se for pra cair, vamos cair atirando!”. Seria o certo, não?: cairiam, e teriam sido injustiçados, e seriam os heróis, e cairiam atirando e lutando até o fim, como os heróis fazem. E de tudo isso seria desenhado um epitáfio glorioso, as homenagens cabíveis, virariam símbolos da resistência: os bons, os verdadeiros mártires.
Mas o capitão estava escolado. “Os caras são maiores que isso, a gente cai atirando e derruba dois ou três, mas eles são milhares e o nosso fim guerreiro é o fim da nossa guerra e a vitória deles, os vilões”. E ele sabe o que é necessário: tem que saber brigar, tem que encarar o vilão de frente e sustentar a briga, e mudar de cenário, e sobreviver às camaleonices do inimigo.
E o capitão veste um terno; e o capitão vai lutando, e vai mudando, e vai atirando – as armas que aparecem, os inimigos que aparecem… e ele não vai cair. Porque ele quer vencer, vencer de verdade.
Custe o que custar.
E ele derruba muros. E ele bate em todos.
E derruba os capangas.
E foge das seduções da inimiga bonitona.
E evita os tiros das naves inimigas.
E ele finalmente encontra o grandissíssimo e poderosíssimo vilão – o chefe, o líder do sistema: Luke Skywalker.
…peraí…
14 de novembro de 2010 – domingo, sobretudo
W , vale a pena rever o Senhor das Armas e procurar quem é o vilão