Desterro

A moça aguarda no meio-fio. Aparentemente quer atravessar a rua – mas a idéia soa imprecisa, posto que não há carros passando e ela, ainda assim, aguarda.

Ela olha para o lado de onde os carros viriam; está de frente à faixa de pedestres. Quererá ela atravessar? Se for esse o caso, o que a impede?

Se nos demorássemos e deitássemo-nos em minúcias a respeito da feição da moça, veríamos que sua condição atual vai muito mais longe do que um simples querer atravessar a rua. Não que ela não queira – provavelmente quer. O que acontece (presumindo, já que não temos à disposição os artifícios do narrador onisciente – a onisciência deste, no caso) é que algo a atormenta e seus olhos “vêem” mais do que a rua sem carros à sua frente.

Sabemo-lo por conta de sua feição carregada – as rugas bem demarcadas pela tensão que carrega, seus ombros rijos e sua postura levemente encurvada, como se dissessem do enorme esforço que é carregar as memórias e lembranças que ela carrega. Mais que tudo isso, no entanto, são marcantes seus olhos. Que dor nestes olhos!

Um transeunte não poderia deixar de reparar, se por ela passasse; mas ninguém passa. Ninguém passa.

E para todos, e para o mundo, ela mal existe. Não há dela um traço sequer nos semblantes de tantos e tantos homens, tantas e tantas pessoas que enchem prédios e casas e ruas. Em sua rua, nesta rua em que está, ela está só. terrivelmente só.

Seus olhos estão rasos d’água, como se fosse chorar; mas ela não chora. A comoção nos carrega, empáticos, e demoramo-nos em parágrafos empáticos, como se soubéssemos, empaticamente, a solidão que lhe vai à alma.

Será? Será que vai, à sua alma, sob seus ombros tensos e recurvados, dentro de seus olhos rasos d’água, diante de seus pensamentos perdidos à espera dos carros por que esperar – será que vai a solidão medonha, a dor? Ela sofre, a sofrente?

Há que se pensar que não. Pois não há quem a acompanhe – nem ela mesma. Ela espera pelos carros por que esperar, espera os transeuntes curiosos de que se esquivar, casta – mas ninguém olha. Ninguém passa. Ninguém. E a rua vazia. E ela. E ela, vazia.

E ela.

E ela.

Pensaríamos que ela passou – hoje ou ontem ou há tempos, tanto faz – por uma violência horrorosa. Ela teria sido estuprada, seria o mais provável. E as ruas seriam as únicas testemunhas de seu desterro, sua perda irreparável, sua espera pelo nada que não vem.

Mas não sabemos. O narrador já não está. Meu relato é só, e ela não tem nome, e meu texto se esvai nas brumas da exaurida língua nossa.

Lhe presto testemunho, vítima do silencio. Somos sós.

Cabe lembrar que ela nada sabe e, se algo disso faz sentido, ela jamais saberá. E ela ainda está só.

22 de novembro de 2010; o quarto de um hotel barato no centro de São Paulo.

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