Tinha sido uma besteira, uma irrelevância qualquer – fazia tão pouco tempo e já nem lembrava o que tinha sido.
Mas eram tantas irrelevâncias, e eles iam e vinham tão atrozes, que aquela em específico lhe pareceu de súbito insuportável.
Porque ele se deu conta de que morria gente demais. É uma conclusão estúpida, e não faz lá grande sentido, mas o atingiu de tal forma que não houve escapatória: era insuportável que morresse tanta gente.
Por que morre tanta gente?
Não é que ele imaginasse que humanos devessem ser imortais – se a ideia sequer lhe ocorresse, teria sido uma catástrofe – mais uma aporia insuportável, mais um peso para suas costas.
Não, não é que humanos devessem ser imortais; mas é estúpido, e atroz, e insuportável que morram.
Como pode, alguém morrer? Porque alguém, cada alguém, é um mundo, guarda consigo mundos, desvela e viabiliza mundos. Cada alguém é uma fonte de vida, é um milagre à beira do colapso, e em vista dessa provisoriedade mágica, a morte é de uma estupidez absolutamente intragável.
Uma pessoa, uma qualquer pessoa guarda consigo as marcas de miríades de pequenas constelações de eventos, coisas que só com ela existem, e sem ela nada daquilo existe; e eis que, subitamente, aquilo deixa de existir, simplesmente deixa de existir. Como pode?
Pensa, então, na infinitude de gente que morre. Imagina a hecatombe que é esse apagamento mesquinho de multidões de singularidades, de histórias, de acasos e encontros. Imagina quantos brilhos, sorrisos, lágrimas, quantos sonhos, quanta intensidade, apagada como a chama de uma vela de sete dias soprada com descaso por uma brisa qualquer.
As orações, as devassidões, os milagres.
Tudo que poderia, e que foi, e que pelo sopro de um instante pura e simplesmente já não é, já não será.
E aquilo lhe pesou demais, como uma bigorna que se amarrasse em algum lugar de suas vísceras, baixando sua cabeça por sobre seu peito, derrubando seus ombros, roubando seu ar, travando firmemente suas mãos.
A angústia.
E em um arroubo ele alcançou o controle remoto e desligou a televisão, e esperou que se apagassem (quem dera se apagassem!) as notícias dos abusos, dos demandos, dos excessos, das mortes.
Os mortos nas ruas da Ucrânia.
(Como será que tinham vivido, esses que morreram estupidamente nas ruas da Ucrânia? Que tipo de reunião familiar, que tipo de poesia, que tinha de sonho?)
Os mortos de fome, de Covid e de violência urbana, párias do violento e mesquinho pacto nacional.
Os desassistidos, desvalidos, os desgraçados da terra.
Angariando o que pode da força que resta ele inspira, e enquanto o ar penetra seus pulmões ele levanta os ombros, levanta a cabeça e deixa-a jogar-se para trás. O cinza sombrio cede um pouco, e ele aproveita a claridade leitosa para reabrir enfim os olhos.
Ali ao lado seu pai dormia, finalmente dormia – a esperança era que pudesse dormir um bom tanto, agora, de forma que talvez se recuperasse das agitações do dia.
Pensa então em ligar para a Marta, ver como ela tinha ficado depois da malfadada visita; poderia, quem sabe, tentar explicar que o esquecimento não era sinal de desconsideração, assim como a lembrança não era sinal de preferência. Explicar que ele não estava levando nenhuma vantagem (“pelo contrário”, lhe ocorreu – mas isso ele certamente não diria, se ligasse).
Não conseguiu imaginar a explicação surtindo algum efeito.
Ressentiu-se por não poder ser um apoio para a irmã.
Ressentiu-se por estar preso aos cuidados do pai.
Cuidados, no fim das contas, absolutamente estúpidos e fúteis: o pai não lembrava, não usufruía, não melhoraria.
Uma luta puta, e fadada ao fracasso.
Uma imensidão de cuidados, esquecida.
E toda uma vida, aos poucos e inexoravelmente, esquecida.
E as lembranças – as do pai; e as do pai; e as dele.
Angariando o que pode da força que resta ele inspira, alcança o controle, e liga a televisão, reencontrando os mortos nas ruas da Ucrânia, os mortos de fome, os mortos nas ruas de São Paulo, e todos seus colegas, desgraçados da terra e desterrados da graça, filhos de um esquecimento que se contorce enquanto, rangendo, leva tudo abaixo.
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