Alice na trincheira

 

Este não é um texto de ficção, é apenas o relato de um acontecimento fantástico.

Recebi, entre junho e agosto do ano passado, as cartas que abaixo torno públicas. Não sei por que as recebi, nem quem as enviou; investiguei a possibilidade de se tratar de um erro dos correios, ou material publicitário insólito, ou piada de mau gosto da parte de algum conhecido, mas até o momento não pude encontrar nenhuma razão que desacredite a veracidade das cartas (nada além de saber que é absurdo supor que possam ser verídicas).

Decidi publicá-las porque me parece uma chance mínima de me desfazer do estranhamento que elas me causaram, e que me acompanha até hoje. Com alguma sorte elas encontram seu destino, ou funcionam como entretenimento para alguém, ou me livram do peso de ter sido “eleito” destinatário delas.

 

As Cartas:

 

8 de junho de 1917

 

Carroll,

 

cheguei ontem ao fim da tarde, mas só agora pude escrever – peço desculpas pela demora. Reproduzo como posso a recepção que foi oferecida a mim e aos colegas do destacamento de emergência que componho:

“Senhores, bem-vindos. Infelizmente recebo vocês com uma má notícia: vocês estão mortos. Tudo que viverem aqui é um entretempo; um sonho; um limbo. Os homens que nos trouxeram aqui decretaram nossas mortes. Não compete a eles dispor de nossos corpos: disso trataremos nós mesmos – nós, e os Vermelhos”.

Esse homem teatral, grave, forte, era o general Coelho, responsável máximo pelas manobras nesta trincheira.

A chegada de nosso destacamento não parece ter mudado muita coisa no cotidiano da vala em que vivemos. Ainda não conheci ninguém a quem queira chamar de amigo, agora ou em qualquer futuro próximo; todos aqui parecem desapressados, esvaziados, entregues ao escorrer dos dias, à manutenção mecânica da precariedade da trincheira. Como a precariedade é imensa, há muito a se fazer!

O general Coelho, esse que nos recepcionou com todo o carinho que relatei, vive apressado; tudo parece já ter acontecido, e ter chegado atrasado quando enfim aconteceu: segundo ele já morremos e temos muito pela frente,  a guerra está só começando e já está definida, nosso front é caso perdido e é o fiel da balança; somos importantes e no fundo não fazemos diferença.

Cheguei há uns três dias, e só agora consegui sentar para te escrever – mas ainda estou longe de entender que lugar é esse e o que estou fazendo aqui.

Espero que esteja bem. Espero que sigam firmes e proveitosas as reuniões com Barrie, os Woolf, a recém-chegada Rowling, todos eles. Mande-lhes lembranças em meu nome, sim? Assim que puder mando mais notícias. Seu,

Alice

 

 

11 de junho

 

Infelizmente não consigo supor que vá sobreviver a esse lugar: se não for morto de cólera ou em batalha em breve, morrerei de tédio ou desgosto – ou ambos. Este lugar é o cúmulo da aridez, a falência do humano: não há espaço algum para maravilha, devaneio ou arte alguma; tudo aqui se passa como se nada houvesse de belo no mundo. Ressinto-me da Rainha e de seus jogos, com todo meu coração.

Três soldados morreram de cólera ontem – um deles recém-chegado, como eu. Tenho tomado todas precauções possíveis para que meu fim não seja nesse buraco ridículo mas, infelizmente, quanto mais me cuido, mais ridículo sinto que minha vida se torna. Sinceramente, não sei se sairei dessa.

Peço desculpas pelo tom soturno da carta, mas imaginei que a ausência de notícias seria pior do que o desprazer de ler esta.

 

 

19 de junho

Seguimos plenamente ocupados com o tédio e os ofícios ligados à manutenção da precariedade que nos acolhe.

Ontem um sujeito perdeu a cabeça. Mandaram-no despachar os corpos dos falecidos de quarta-feira (atacados pela crise de cólera e diarreia); horas depois, quando deram pela falta do sujeito, partiram em sua busca e o encontraram sentado em meio a três ou quatro cadáveres que dispôs à sua volta como comensais, colegas num alegre chá maluco – servia-lhes chá, contava piadas e se irritava quando, rígidos e inertes, tombavam ao sabor de suas estripulias.

Por vezes me descubro ansioso pelo dia em que o Coelho honrará a pressa com que conduz tudo por aqui e nos enviará de uma vez por todas à batalha contra os Vermelhos.

 

 

22 de junho

Coelho começou preparativos para uma ofensiva. Se não receber notícias minhas em duas ou três semanas, promova uma grande festa para celebrar a vida e, quando estiver já ébrio o bastante, faça algum tipo de anúncio desajeitado; passada a ressaca, escreva algo em minha memória e siga com sua vida.

 

 

23 de junho

É possível que também eu tenha enlouquecido. Isso, ou encontrei algo maravilhoso!

O Coelho me incumbira de inspecionar a trincheira em virtude dos preparativos para a ofensiva. Seguia, então, assolado pelo desgosto e perdido em meus pensamentos, de forma que quase morri de susto quando caí subitamente em um buraco, disfarçado em meio às poças e à sujeira. No fundo de seus cerca de noventa centímetros o buraco desemboca em um túnel que segue paralelo ao chão rumo sudoeste, ou seja: diretamente em direção à trincheira inimiga!

O prudente, sem dúvida, seria alertar Coelho, mas não pude fazê-lo: preciso descobrir onde leva o buraco – sua mera existência me restituiu o brilho nos olhos e a alegria de viver. Espero que ele me proporcione algum tipo de acontecimento fantástico, qualquer coisa que me distraia ou encante.

 

 

[sem data]

Não sei quanto tempo se passou, não sei se nada disso é real.

Na manhã do 24 de junho, como programado, evadi-me das tarefas de preparação para a ofensiva, reencontrei o buraco e embrenhei-me túnel adentro.

O túnel rapidamente escureceu, de forma que segui às cegas, por um tempo que me pareceu infinito; o túnel seguia e seguia e seguia, e a certa altura percebi que não teria espaço para manobrar e retornar, de forma que seguir era o único caminho possível. Ele se tornava mais e mais estreito conforme avançava; quando já me supunha fadado a morrer entalado vislumbrei uma vaga claridade ao longe e exultei: afinal eu viveria! Era como nascer de novo, e tão intrigante quanto imagino que seja nascer pela primeira vez.

Logo supus que estava diante da trincheira inimiga: diante de meus olhos passavam, apressados, soldados Vermelhos, tão entregues às respectivas tarefas que passavam sem me ver. Ainda assim eu me recolhia, temeroso. Aos poucos, no entanto, reparei que eles sequer pareciam perceber a abertura do buraco por que me embrenhara.

Comecei a entreter a possibilidade de estar diante de algo efetivamente mágico, e fui sentindo a imperiosa necessidade de testar minha hipótese. Assim, cheio de medo e ansiedade, avancei até o limiar, pronto para ser alvejado e morto ali mesmo; passou um soldado, e outro, e outro, e percebi enfim que estava mesmo, de alguma forma, invisível – embrenhara num buraco mágico!

Reassegurado e exultante, passei a reparar nos soldados com mais calma, e foi então que novo espanto, novo assombro me invadiu: os soldados, e o general que os guiava, eram… (sequer consigo descrevê-lo, Carroll, perdoe-me a imperícia no relato e as tantas rasuras) eles eram… eram nós! Os soldados ali diante de meus olhos, os Vermelhos, seguiam em seus ofícios, trajados com o uniforme dos Vermelhos, a trincheira deles era a trincheira dos Vermelhos, e no entanto, de alguma maneira, no entanto, para além de tudo isso, ali onde eles eram pessoas, ali através de seus semblantes e histórias de vida, ali onde eles efetivamente eram quem eram, eles eram nós! Havia ali um coronel Coelho, Vermelho, e os soldados meus companheiros de infortúnio, o Maluco do Chá, certamente haveria ali também um Alice, Alice como eu, através do Buraco… através do Espelho.

Oh!, Carroll, Carroll!, não sei dizer quanto tempo estive ali. Estive ali como que entregue ao segredo da vida, contemplando a guerra desde seu avesso. Perdi-me em pensamentos, e perdi-me de mim; é possível que tenha dormido (ou enlouquecido!), mas eventualmente dei-me conta, num sobressalto, que tinha de voltar. Pus-me então a caminho, e logo descobri que o caminho também estava transformado: mal embrenhei na escuridão e caí, caí longamente, caí infinitamente em algum tipo de buraco dentro do buraco dentro do buraco. Estava certo que morreria, ou que cairia infinitamente até o centro da Terra (o que, no fim das contas, dá no mesmo), mas fui repentinamente acolhido por um ângulo que se oferecia ao final desse infinito buraco, e então rolei e ralei e sofri uns tantos metros até me ver estatelado, estupefato, em uma poça, não muito distante do centro de atividades da trincheira dos Pretos.

Sei que já deve estar absolutamente descrente de seu fiel amigo, e a esta altura já deve estar seguro de que perdi a cabeça e confidencio delírios. Não posso furtar-me, no entanto, de confessar-lhe ainda um último absurdo com que fui brindado então – e conto ainda aqui com sua bondade e seu bom julgamento, e prometo não repreendê-lo jamais se souber que se entregou a gargalhadas ao ler; bom: quando enfim me recuperei e me pus de pé, percorri todo o percurso da trincheira e não encontrei ninguém! É como se ninguém nunca tivesse estado aqui, não há sinal algum de fogueira, de depósitos, de fossas e aterros, não há cadáveres, nada. Passei a noite em claro, redigindo esta carta (esta e outras tantas versões ainda piores dela que destruí madrugada adentro), tentando organizar meus pensamentos, tentando compreender, reunir os pensamentos num ponto.

Hoje pela manhã, para meu espanto, o carteiro veio como de hábito. Compreendi que não deveria sinalizar nada a ele – tive medo de ser tomado por louco, ou por desertor, ou assassino, já nem sei. Enfim: agi como se nada estivesse acontecendo, recebi as cartas endereçadas aos colegas e pedi que aguardasse enquanto incluía estas últimas palavras nesta carta. Não sei o que fazer com o que vi e vivi, menos ainda sei o que fazer com o vazio e os desconhecimentos atrozes em que estou imerso. Rezo apenas para emergir para fora daqui, por obra de alguma nova maravilha – quem sabe através do espelho de sua cômoda, ou quem sabe eu ressurja transformado em algum outro tempo inóspito. Quem sabe!

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