O clima de tensão era praticamente visível: havia uma espessura, uma expectativa, a espera por algum tipo de catástrofe ou milagre, havia medo e um esforço obviamente inútil de pretender normalidade.
Em geral não se via muita gente. Já era tarde, os trens pegavam pouca gente nas estações, os faróis paravam poucos carros junto às faixas por onde ninguém mais passava. Os bares contavam ainda com seus clientes, à cata de assuntos e tremoços, lutando para animar os últimos amigos secretos, estendendo os assuntos como a um cobertor curto.
A maior parte da população já se encontrava em casa, escovando dentes, assistindo Netflix, Jornal Nacional, comendo pão com manteiga, transando, bebendo no sofá.
Em busca da população e de seus hábitos, o mais fácil de encontrar seria a estática perturbadora emanando das pessoas e de tudo ao redor delas, a eletricidade baixa dos rancores a ranger os dentes, a inquietação perturbadora por trás dos mesmos velhos pensamentos, tentando perseverantemente sobrepor-se à frustração, ao medo e à raiva.
Para além de toda essa carga, poder-se-ia divisar nitidamente a estabilidade: nada aconteceria. Nada estava acontecendo. As pessoas se desfaziam e desnaturavam como uma sopa fervida em fogo baixo, perdiam-se de si mesmas conforme se desfazia, tão nítida quanto difusamente, a gosma que de alguma forma tinha mantido unida essa cidade, esse imenso mioma terreste chamado Senzala.
Mesmo no centro. Ali havia, é claro, o burburinho habitual, que nunca parava e que provavelmente nunca pararia. Por ali passavam, como de hábito, os mesmos mendigos, vendedores de droga, putas cis e trans, universitários de esquerda disfarçando seu medo, advogados e juízes que não disfarçavam nem o medo nem o nojo; em meio a eles a mesma imensa trupe de meninos de rua, alguns ainda em seus quatro anos de idade, esparramados pela praça, assistindo os comerciais da megavisão, televisão de comerciais e flashes de interações mais repercutidas em redes sociais. Os menines de areia, como os chamavam os universitários, toda noite estavam lá, e eram sempre muitos, sem que se soubesse quantos eram os mesmos e quantos eram novos, quantos haviam morrido e quantos haviam abandonado a praça em função de seus progressos em alguma carreira criminosa – de qualquer forma, fossem quem fossem (e quem se importava?), estavam sempre ali, e eram sempre muitos.
A megavisão cortou, então, abruptamente, a transmissão das últimas twittadas de Neymar Junior narrando a chegada das celebridades em sua festa, gerando algum buchicho entre os menines. As notas da Voz da Senzala, por sua vez, encontraram amplas vaias: ninguém quer saber sua opinião, Vampiro!
O informe, no entanto, não seria narrado por Vampiro, o presidente em exercício de Senzala. Em seu lugar Sheherazade, locutora dos noticiários financiados, apareceu com semblante grave.
Povo de Senzala, boa noite. Interrompemos a programação regular de seus televisores e espertofones para essa transmissão urgente – seus aparelhos voltarão a responder a seus comandos, podendo ser utilizados ou desligados, após o término dos anúncios. É com grande pesar que venho informar-lhes a adoção de novas regras de pacificação, tornados inadiáveis em vista dos últimos acontecimentos. Transmitimos agora, ao vivo, o desenrolar de eventos lamentáveis a assolar o coração de nossa queria Fazenda.
A gravação cortava, então, e passava a mostrar o centro de Senzala, ali mesmo, ao redor da megavisão, tomada por uma verdadeira batalha medieval, com menines e policiais e transeuntes, sangue e fogo e rojões, a câmera balançando, janelas se fechando nos prédios baixos ao redor. O sinal de “AO VIVO” ainda estava ali, no canto da tela. Os menines se entreolhavam, comentando confusos palavrões a veicular sua confusão, enquanto uns poucos transeuntes iam parando e se aproximando, estranhando, eles também, a cena. Enquanto isso o volume “ambiente” abaixava na transmissão da megavisão para que Sheherazade retomasse a narrativa.
Como vocês podem ver, o centro de Senzala está ameaçado pela violência e pela barbárie. A população local confronta os policiais da patrulha local, nesse momento em franca minoria, auxiliados apenas por sua bravura e pelos poucos cidadãos de bem presentes que se dispuseram a defender, junto às forças da lei, o bem e a paz. A polícia federal e as forças armadas já foram acionadas e em breve estarão no local. Não se sabe, no entanto, a dimensão da revolta: agentes da Inteligência da Paz informam que há indícios de uma rebelião comunista sendo tramada pelos algozes da nação, e indicam que a revolta que transmitimos ao vivo pode ser uma das primeiras ações do grupo terrorista, de nome, dimensão e porte desconhecidos. Em vista da gravidade da situação Presidente Vampiro convocou as tropas e conta com o apoio de todo o Comitê de Pacificação para a implementação, a partir de amanhã, do Regime de Exceção, tendo em vista a segurança da população e a satisfação e beneplácito do Deus de Cobre.
A transmissão cortava, então, as cenas “ao vivo” da Senzala e voltava para o estúdio e para Sheherazade, que contava agora com uma audiência significativa aglomerada diante da megavisão.
Queremos, no entanto, insistir para que confiem em Vampiro, na Pacificação e no Deus de Cobre: a situação está sendo controlada e o Regime de Exceção garantirá o bem estar e a felicidade de todos. Pedimos à população que procure o Canal Cidadão do Bem para reportar qualquer atividade suspeita por parte de conhecidos – pendores comunistas, críticas ao regime, ao Programa e ao Presidente, manifestações ideológicas de gênero, classe, raça ou estado, contestações de qualquer natureza à Ordem e ao Progresso. Reiteramos, por fim, que o Regime de Exceção ocorrerá conforme informado pela mídia nos últimos dias: os cidadãos deverão manter os microfones e câmeras de seus espertofones e televisores ligados, deverão manter-se assíduos em seu comparecimento ao trabalho e ao Açoite, e deverão estar de volta aos seus lares às vinte horas, horário de Casa Grande. O Regime de Exceção, portanto, estará em operação a partir de amanhã. Para a glória de Casa Grande, pela honra de Vampiro, pela Ordem, pelo Progresso e para o beneplácito do Deus de Cobre. Uma boa noite a todos.
Havia uma pequena massa diante da megavisão quando as notas do Voz do Brasil encerraram a programação especial e retornaram para um comercial de faculdade a preços populares veiculada pelo Luciano Huck. As pessoas não assistiam, conforme podiam, e se olhavam umas ao redor das outras – porque não olhavam umas às outras, já que em geral já não se olha mais assim – procurando entender o que haviam visto.
Um menine miúdo, talvez por volta de seus sete anos, levantou-se de seu lugar, bem em meio aos menines.
Porra… é mentira aquilo ali!
Irradiou-se certo desconforto. Os menines se entreolhavam, mapeavam as pessoas que haviam se aglomerado ao redor. Alguns puderam ver quando um engravatado, provavelmente advogado, que estivera ao fundo assistindo à transmissão, virou-se para seu colega de gravata e comentou entredentes: olha aí um comuna em plena ralé, Zé. Um agitador… esse lance vem dos pobres, não te falei?
Outros menines ao redor do miúdo levantaram e se puseram a meio de caminho, impedindo a visão dos engravatados, tentando protege-lo. O movimento desses poucos, por sua vez, detonou algo entre os demais – deram-se conta, talvez, de que aquelas cenas não eram ao vivo, mas seriam ao vivo em breve.
Mais e mais menines levantavam, juntavam suas coisas, punham-se em movimento. Aos engravatados outras pessoas se juntaram, e eles apontavam agora, mais confiantes, em direção a diversos menines.
Vi aquele dizendo que a Sheherazade estava mentindo.
Aquele outro incitou colegas a apedrejarem o megavisão.
Um deles estava armado, eu vi.
Eles estavam cantando hinos comunistas o tempo todo, quase não pude ouvir o informe.
Os menines iam fugindo, agachados, quase de cócoras, dispersando e aglomerando e serpenteando conforme avançavam em direção às partes mais escuras do centro, por onde poderiam escorrer rumo aos esgotos, aos lixões e às favelas. Os Cidadãos de Bem já eram em uma pequena multidão na praça da megavisão, muitos deles vestidos com as cores da Casa Grande, convocando a Força a matar os menines comunistas, cantando o hino nacional, entoando loas ao Deus de Cobre.
Alguns menines provavelmente morreriam aquela noite – alguns teriam estado na praça da megavisão, outros não. Outros tantos haveriam de morrer nas noites seguintes. Mas não importava, no fim das contas. Afinal, tudo estava bem, nada estava acontecendo: Casa Grande estava a salvo, Senzala sob controle, Cidadãos de Bem contentes, e o Deus de Cobre regozijava-se com os sacrifícios constantes – não que Ele goste de sangue, quem dirá de sangue sujo de gente suja, mas os Justos haveriam de ter a coragem, e a espada, pagando com fervor o preço em sacrifício para que reinasse a Paz, a Sua Santa Paz.