Opa! Puxa, que bom revê-lo, menino! Cresceu, hein? Entra, entra, faz favor. Pois é, faz tempo. Bom que você veio!
Quer um café? Passei agora há pouco. É, é mesmo. Então, sabe que desde que aposentei – faz dez anos já, acredita? – todo dia, de segunda a sexta, eu passo um café por volta das cinco da tarde e ouço a alguma peça de música clássica ou coisa do gênero. É, acho ótimo. Hoje em dia uso esse coisinho aqui que o Dito me deu de Natal; “celular”, diz ele, mas o fato é que nunca usei pra ligar nem receber ligação de ninguém, só uso pra jogar joguinhos, ouvir música, coisa assim. Enfim, antigamente eu escutava no rádio, ou na vitrola mesmo, mas um dia desses o Zé acabou levando minha vitrola, parece que anda na moda, né? Pois é. Aí ele levou a vitrola, deixou os discos aqui, às vezes eu procuro o vinil que gostaria de ouvir e jogo aqui no coisinho pra ouvir, é quase a mesma coisa.
Não, fica tranquilo, ainda não sou esclerosado assim, a gente conversa e depois eu ouço, mais à noitinha – é bom mudar os hábitos, principalmente um velho como eu.
Alguém pediu pra você vir? Não, nada não, é que faz tempo, né?
Um dia desses morreu o Figo. Gente finíssima, perda irreparável. Era muito amigo meu. É, eu sei, mesmo seus pais não o conheceram, ninguém da família chegou a ter contato com ele, eu encontrava ele mais durante a semana mesmo. Conheci ele depois de aposentado, por sinal. Eu tinha aposentado há pouco tempo, ainda não estava bem acostumado a passar os dias em casa, digo, no apartamento (eu já estava aqui, tínhamos vendido a casa uns dois ou três anos antes para que seu tio pudesse montar aquele negócio dele, sabe aquela padaria, boulangerie, coisa assim?). Sua avó era viva, nessa época, mas ela passava pouco tempo em casa, vivia visitando amigas, ia a um clube, ia ao cinema, uma série de coisas. Ela me convidava, estava preocupada comigo, essas besteiras, mas eu não tinha vontade nenhuma, não via sentido em inventar ofício pra me distrair enquanto o tempo passa, enquanto o futuro não vem, sabe? E não ia, porque não queria, e acabava passando bastante tempo em casa sozinho. Fazia coisas pequenas em casa, pequenas manias como essa, café, música, lia bastante, assistia filmes – em casa mesmo – na época eu escrevia. Mas é claro que ficava bastante em casa, e por isso às vezes me pegava pensando, inquieto, tudo. E por conta de alguma coisa que escrevia naquele período me veio a lembrança de minha avó, sua tataravó, a dona Arminda; e me veio a lembrança, acima de tudo, do doce de figo da dona Arminda, que era uma delícia. A bem da verdade o que me veio nem foi tanto a lembrança do doce, mas foi a lembrança dos preparativos – eu não gostava dos domingos à casa dela, não gostava de meus tios e primos, e por isso passava o tempo todo na cozinha com ela, enquanto ela cozinhava, e via tudo que ela fazia por lá. E o doce de figo, de tudo que ela fazia, era o mais impressionante: era um tal de cortar, cozinhar, secar com pano, era óleo, açúcar, uma moda danada; e a dona Arminda ia tocando seu doce, e ficávamos quietos, e às vezes ela me contava alguma história, em geral sobre a infância do papai – ela tinha um jeito engraçado de tirar sarro da ingenuidade e da seriedade dele sem que fosse desrespeitoso, foi inclusive por conta dela que passei a apreciar mais meu pai e sua humanidade, toda recatada, ensimesmada. E fui lembrando do doce de figo, e da dona Arminda, e do meu pai, e decidi que ia fazer o tal doce de figo no dia seguinte. Sua avó ficou doida quando chegou em casa e encontrou ali todos os ingredientes, ou melhor, achou que eu tinha ficado doido, tentou me dissuadir, tentou se dispor ela mesma a fazer, mas evidentemente não houve jeito – eu inclusive fiz ela sair de casa mais cedo no dia seguinte, para que eu pudesse fazer meu doce em paz. Estava mesmo sendo um belo dia, eu e a lembrança de dona Arminda envoltos em açúcar e óleo e figos verdes e aquela meleca leitosa irritante que os figos soltam, estava tão imerso naquilo tudo que tomei um susto danado quando a campainha tocou; como eu não esperava ninguém fiquei até um tanto assustado, mas decidi abrir quando vi pelo olho mágico que era um sujeito vestindo roupão e pantufas, um sujeito novo, nos seus quarenta anos, talvez. Achei curiosíssimo quando ele assustou no momento em que abri a porta – afinal, ele que tinha tocado a campainha! Ele gaguejava um tanto, parecia até envergonhado. Bom, para encurtar a história: ele era morador aqui do prédio, morava uns andares acima e tinha descido porque sentiu o cheiro de doce de figo e queria saber se poderia assistir enquanto eu preparava o doce; ele queria acompanhar, acima de tudo, aceitaria de bom grado um figo ou dois quando estivesse pronto, mas o principal era assistir, porque a avó dele fazia doce de figo na casa dela e ele sentia uma saudade danada da avó, porque ela morava no sul do país e ele não ia pra lá fazia muito tempo. Tive alguma pena do rapaz, mas achei a coincidência muito surpreendente, pensei mesmo em por ele pra dentro de casa pra contar da minha avó. Só que aí percebi que não era assim que eu queria que as coisas fossem: tinha expulsado até a Célia de casa para viver meu processo em paz e ia agora por pra dentro de casa um sujeito que nunca tinha visto na vida? Achei aquilo injusto com a Célia, com a lmebrana de minha avó Arminda e, acima de tudo, comigo mesmo e meu sossego de aposentado. Por isso disse a ele que entendia a situação e pedia desculpas pela eventual grosseria, mas que o preparo do doce era marcado por uma certa carga afetiva para mim também, e que me remetia a um tipo de intimidade que pedia privacidade. Perguntei qual o apartamento dele e disse que depois levaria um pouco do doce à casa dele, sem o menor problemas, mas que o preparo eu queria viver sozinho com minhas lembranças. Ele aceitou, inclusive me pareceu por um momento ter se emocionado (coisa que eu não entendi), disse o apartamento – morava aqui em cima, na época, no 112, depois ele acabou mudando prum bairro próximo aqui – e foi-se.
No dia seguinte eu fui mesmo levar um pote de doce pra ele. Não levei mesmo a mal, sabe? Logo que ele se foi, um pouco perturbado pela coisa toda, fiquei até um pouco irritado, confesso. Pensei que era uma afronta supor que eu, só por estar aposentado e entrado em anos, ficaria automaticamente agradecido pela visita, poderia automaticamente receber gente em casa. Como se a velhice deixasse o sujeito à mercê das idas e vindas dos outros, fosse como fosse.
Mas pensei depois que isso já era rabugice, e eu acreditava ainda estar novo demais para ser rabugento. Então retomei meu doce de figo, revi algumas poucas fotografias que eu tinha da Arminda, e logo depois a Célia chegou, riu da situação toda, rimos juntos, e seguiu a vida.
Desde então fiquei próximo do Figo, porque era mesmo um sujeito simpático, e trabalhava de casa, então tinha os horários flexíveis, de forma que com alguma frequência passamos a nos encontrar, às vezes aqui, às vezes na casa dele. Ele não tinha esposa nem família, e acho que além da história do figo, e além de uma eventual preocupação comigo (que acho improvável, mas às vezes acontece), acho que ele estava solitário, queria companhia, pra si próprio. Sabe? Os velhos às vezes são ajudados mais para que os jovens não fiquem tão entregues a si mesmos, penso eu. E tudo bem que seja assim, contanto que faça sentido pra todos envolvidos. Não é mesmo?
Mas olha só, pensei no seguinte: que acha de você voltar pra sua casa, mandar um abraço à sua mãe, dizer a ela que estou ótimo e que meu número de telefone continua o mesmo; e aí, se você quiser, marcamos de você vir aqui um dia – quer vir amanhã? Amanhã não? E depois? Ué, mas tente lembrar! Depois de amanhã à tarde você pode? Ótimo! – então, você vem aqui depois de amanhã, à tarde, comemos nós um doce de figo, te mostro as fotos da dona Arminda, e colocamos o papo em dia, que acha? Porque agora, filho, você vai me perdoar, mas preciso agilizar as coisinhas aqui de casa, porque à noite tenho um compromisso com um antigo cliente que quer ajuda com o inventário dele, que ele está adiantando, coisa de amigo, mesmo. Tudo bem?
Ótimo, filho, claro. Fiquei muito feliz que veio, viu? Mande mesmo lembranças à sua mãe, ok? Isso. Um abraço!
Hmpf.
Oi, Zé? Isso, ele mesmo. Escuta, quando você trouxer as compras que encomendei naquele e-mail, você inclui uma lata de doce de figo, faz favor? Isso, doce de figo. Não, não é pra mim não, vou dar a um neto que está precisando. Muito obrigado, Zé, boa tarde.
Hmm… ótimo, Brahms, isso mesmo!