No princípio Zé-ninguém foi criado. Pressionado, acuado, malvisto, malquisto e maltratado; cresceu a sombra, sumiu o homem: Zé-ninguém. E foi o canto, o espanto e o medo, o dia primeiro.
E o chefe disse, “que haja prazo”, e “que haja resultado”, e fez-se a urgência, a iminência e o pânico. Acossado, acuado, emboscado, atacado, por fim exposto e humilhado – e foi o dia, e o dia seguinte, e o dia depois deste, o dia segundo.
E fez-se o cotidiano em mar revolto, e as ondas que lhe batiam, as contas que se somavam, os prazos que se perdiam, e em grande choque fez-se o raio e o trovão: ergueu a voz, e foi demitido. Justa causa, injusta causa, sem orgulho, sem “cartinha”, sem vintém, foi à casa no dia terceiro.
E lhe foi dito, “passar bem”, e assim foi: esteve à casa, de cuecas, a comer pães com manteiga e feeds de notícias e scrolls de Facebooks e Instagrams, e dormiu cedo, e acordou tarde, e por fim cansou, e descansou de cansar, e cansou de descansar. Passou-se ao avesso de si – e foi o quarto dia.
Nada lhe foi dito, e esteve à sombra. As persianas estiveram fechadas, o celular a descarregar-se, rápido demais, a comida a escassear o dinheiro, e a fome a transtornar-se em embrulho e diarreia e ânsia. De avesso pôs-se descurado, a apodrecer às vistas, perdido do tempo e das chances – e foi o quinto dia.
No sexto dia sentou-se no chão da sala, alheado. Olhou à sua volta, e viu pedaços de si a a despegarem de suas carnes, deporem-se à sua volta, metódica e harmoniosamente, como pétalas, pétalas dele, a ser dele a rosa, e ele o vazio que da rosa é o centro. Puxava as pétalas, despreocupadamente: nem sequer; mal me quer; nem sequer; mal me quer – e foi o sexto dia.
Despido de si, de Zé tornado em ninguém, alçou as persianas, contemplou por um segundo a cidade a zunir, a chuva a bater, trovões a rugir, nem sequer o mal a lhe querer, e sentiu que perdera todo o peso, e que podia enfim voar, planar, ir ao longe e ao longe sumir; as leis já o garantiam, os chefes o queriam, se sequer se importavam, e não se importavam, e tudo fluía como devia fluir, e ele fluiria, por fim. E “assim os céus, a terra e todo o seu exército foram acabados. E havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e fizera”, e Zé planou, e zuniu, e bateu, e rugiu, e por fim, como Deus descansava, ninguém, já despido de Zé, descansou.
Sem dúvida alguma este é o meu poema predileto!