Na esquina da Artur com a Lisboa, um café

Encontrei Borges por acaso; na verdade, se ele não tivesse erguido o rosto para contemplar a curiosa imagem sobre o café, provavelmente eu não o teria reconhecido. Teria sido irônico, se alguém o pudesse saber, que um meu grande ídolo tomasse um café logo ao meu lado, no café do lado de casa, e eu o tivesse tratado como mais um businessman despedindo-se da hora do almoço. Mas ele ergueu o rosto, contemplando a senhora negra despejando café desajeitadamente em uma xícara, e ele olhando assim desenhou diante de mim a exata pose capturada na fotografia que aparece na orelha traseira da “biblioteca borges”, edição de suas obras pela Companhia das Letras, coleção que me inspirou, pelo nome que porta, em um conto que escrevi cuja trama se passa em uma biblioteca na esquina das ruas Borges e Foucault – cujo proprietário e usuário era justamente Borges.

Confundia-me, então, e o surgimento involuntário da escrita labiríntica devem mostra-lo; quem me julgaria por isso? O Borges que tomava café ao meu lado parecia ocupado com seus próprios pensamentos, provavelmente não percebera que eu estava lá, contemplava a negra no muro como se ela fosse nada mais que um anteparo ao vazio de seus olhos – estaria já cego? Provavelmente, pensei – deve estar morto há pelo menos vinte anos, que esteja cego é só detalhe!

“O homem cansado…”, comecei. Estranhei-me assim que comecei a falar – interpelava sem mais um ídolo, argentino, morto, falando em português e sem um “…senhor?” ou um “o senhor por acaso é Jorge Luis Borges?”, nada disso – saí falando. O homem, Borges, se virou em minha direção, franzindo o cenho; retomei: “o homem cansado, no seu texto ‘A utopia de um homem cansado’, ele é o senhor, certo?”.

– Desculpe, jovem… eu o conheço?

– Não, em absoluto; eu não importo.

– Faz bem. Bom, estamos eu e o homem cansado cansados, estamos os dois deslocados, e estamos os dois diante de uma simplicidade notoriamente familiar; pode mesmo ser que sejamos a mesma pessoa.

– Mas… o senhor é Jorge Luís Borges?

– Boa pergunta. Supondo que eu seja, meu lugar é provavelmente em outro café, o Tortoni, em Buenos Aires e não na Lisboa, e estranhando esse estranho que me interpela em melhor castelhano que esse português que usamos agora, não?

Ele assumira, desde o começo, um ar condescendente. De início eu achei graça, parecia um jovem ousado desafiando o tom sacerdotal de um mestre; aos poucos fui me incomodando, e o incômodo virou espanto quando ele, ao fazer a pergunta que relatei há pouco, inclinou-se em minha direção e piscou para mim. Piscou!

É claro que eu sabia do absurdo de encontrar um escritor morto há décadas, e portenho ainda, ao lado de minha casa, tomando café, percebia claramente o absurdo então – mas era ele, não tinha dúvida nenhuma já. E não demorou para que me ocorressem as alternativas mais razoáveis para explicar o absurdo e restituir razão ao universo: eu poderia, deveria, tinha que estar sonhando, fantasiando ou louco; poderia, ainda, ser um personagem de um conto meu, como sou agora a você que lê e como sou agora a mim mesmo que escrevo. Mas nada disso parecia minimamente coerente então, pois sentia a mim mesmo firme e sólido como gelo ou areia, sabia estar desperto, lúcido, atento, vigil, concentrado, temporo-espacialmente localizado.

Apareceu nesse momento em meu socorro o mais insólito socorro que poderia imaginar: Walter Trinca. Conhecia-o há muitos anos por seus livros e testes, estudara-o (sem entender grande coisa) na graduação, e estudara-o novamente (agora entendendo um tanto melhor) quando começara a dar aulas de Psicologia, pouco tempo antes disso tudo acontecer. Por força do acaso conhecera o autor, a pessoa Walter Trinca uns dias antes, naquele mesmo café na esquina da Lisboa com a Artur – ele expunha por lá uns livros de literatura que, se e quando vendidos, rendiam-lhe cappuccinos. O aparecimento de Trinca naquele momento e naquelas circunstâncias me pareceu, curiosamente, mais suspeito do que o aparecimento primeiro de Borges, e quando o vi pensei que só poderia estar sonhando; mas ele se manteve tão imprevisível quanto da primeira vez que o vi, já que dirigiu-se a Borges logo após cumprimentar a mim e à Flávia, dona do café:

– Olha, se Jorge Luís Borges não fosse portenho e falecido há décadas, eu diria sem dúvida estar diante dele…

– Ora, meu senhor, se procede que Borges é portenho e falecido, ele então deve estar em algum lugar mais quente e tomando um café pior e frio.

Disse isso com um sorriso maroto no rosto. Trinca riu generosamente; eu, amador entre titãs, já não sabia o que fazer – parecia, no entanto, que Borges me tomara por cúmplice em sua cena surreal. Eu então tomei alguma coragem e disse:

– Senhor Borges, seria possível que alguém escrevesse, ainda que em pior estilo, um conto em que o senhor visse a si mesmo, anos após sua morte, refletido nos hábitos do tal pior prosador, autor da obra, e nesse conto ver-se-iam refletidos seus estudos sobre a morte e o retorno, deformados como cabe à figura formada e deformada por espelho infiel; concorda?

– Parece-me possível, sem dúvida. A que se prestaria, no entanto?

Ele tinha um ponto, e pegou-me no pulo: teria sido ótimo receber do próprio Borges, falecido, a salvaguarda e o convite à construção de um conto sobre ele, mas teria sido ótimo, sem dúvida, mais a mim que a ele. E agora?

– Bom, lembro-me que o Aleph foi-lhe mostrado, no conto, por um autor sem talentos…

– Premiado, mas sem talentos.

– … e o Aleph estava na casa dele, casa onde morara sua paixão, cujo nome esqueço…

– Beatriz Viterbo.

– Isso, Viterbo. Bom, não fosse pelo concurso de seus caminhos o Aleph não lhe teria sido mostrado e o conto não teria sido escrito, de forma que as obras de maior mestria podem depender do ofício de mãos menos destras – podem mesmo ser fruto direto dessas mãos.

– Entendo seu interesse, rapaz, mas seu argumento é assombrosamente falho.

– Exato.

Ele hesitou.

– Entendo. Mas seria você a retratar esse encontro?

– Parece-me possível, e não me falta interesse.

– Entendo. Far-me-ão falta as medialunas e o tango.

– Duvido.

– Tem razão.

Engraçado, o Borges. Trinca não observara a conversa toda – assim que eu sequestrei sua conversa com Borges ele se dirigiu ao balcão e conversava com Flávia enquanto seu cappuccino saía.

Eu queria retomar de alguma forma a conversa com Borges; queria mesmo, confesso, achar um jeito de aproximar Trinca de Borges, estar ali acompanhando a conversa, testemunha desse majestoso encontro; mas isso acabou não acontecendo: Trinca se despediu de mim, do Borges que ele tomava por um senhor parecido com Borges e saiu com seu cappuccino Lisboa afora. Ficamos eu e Borges, cada um em seu banquinho de plástico, e Flávia, cuidando da loja.

Minha cabeça fervia pensamentos de ideias, jogos de palavra, referências escassas à cabala e ao espelho, em busca de alguma imagem que me aproximasse dele e o aproximasse do Borges que eu retrataria se tivesse chance, mas a cada vez que puxava alguma ideia pelo rabo via-a fraca, frouxa, superficial, boba. E foi aí, pensando nas ideias desfeitas quando as puxava pelo rabo, que a ideia se me atinou, clara, simples:

– Os seres amarelos…

Lá estava eu de novo, desajeitado, atropelado. Ele me olhou, a condescendência cedendo espaço ao enfado.

– Os seres amarelos são uma questão minha, não é? Você não confere a eles a importância que eu confiro.

– Como já disse, não o conheço, e você me confirmou que você não importa. E os seres não são amarelo, Amarelo era o imperador.

– Ok, ok. Mas o que não entendo é: sem os seres no fundo do espelho nada disso faz sentido, é só preciosismo.

– Não é preciosismo, é um rasgo. Um rasgo no véu.

– E do lado de lá do véu…?

– Lo café es frío.

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